Mercado

Tecnologia faz bóia-fria trabalhar mais

Eles têm de se esforçar cada vez mais para manter seus empregos e não ser devorados pela tecnologia. São os bóias-frias da cana-de-açúcar da região de Ribeirão Preto (SP), estimados em 40 mil trabalhadores, que convivem com aumentos anuais de área plantada que beneficiam os produtores e com a mecanização crescente.

Esse esforço extra, no entanto, é alvo de investigação da ONU (Organização das Nações Unidas) e da Pastoral do Migrante de Guariba (SP), ligada à Igreja Católica. As duas organizações investigam se as mortes de nove bóias-frias registradas desde 2004 em canaviais da região foram provocadas pelo excesso de trabalho.

Na década de 90, a região produzia 65 milhões de toneladas de cana. Passou para cerca de 90 milhões na safra passada. No mesmo período, os bóias-frias passaram a cortar, em média, 12 toneladas diárias de cana, contra 8 toneladas colhidas na década de 80.

Um estudo da USP mostra que, para cortar 10 toneladas de cana por dia, um trabalhador precisa desferir 9.700 golpes de podão -instrumento usado no corte.

No próximo mês, uma missão da ONU estará na região para analisar as condições de trabalho dos bóias-frias, as condições sanitárias dos alimentos e a quantidade de comida ingerida e a possível exposição a agrotóxicos.

Segundo Flávio Luiz Schieck Valente, membro do Comitê Permanente de Nutrição da ONU, especialistas e a Pastoral do Migrante de Guariba, o excesso de trabalho pode ter causado a morte dos bóias-frias.

“Vamos conhecer in loco a vida do bóia-fria. A situação vivida por eles está próxima do trabalho escravo”, diz Valente, que também é o relator nacional para os Direitos Humanos à Alimentação, Água e Terra Rural da Abrandh (Ação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos).

A última morte suspeita, detectada na semana passada pela Pastoral do Migrante, foi a de Natalino Gomes Sales, 51, registrada no último dia 28, em Batatais. Outras duas mortes ocorreram em junho e em julho deste ano em Guariba e Pradópolis. Os cortadores tinham 26 e 24 anos, respectivamente, e vinham do Maranhão.

“Temos de apurar essas mortes porque o quadro de todas é muito parecido. Eram pessoas novas, que morreram em condições semelhantes”, afirmou Valente.

Nos três casos, a causa apontada foi parada respiratória, o que é questionado pela socióloga Maria Aparecida de Moraes Silva, da Unesp (Universidade Estadual Paulista) de Araraquara, autora do livro “Errantes do Fim do Século” (editora Unesp), que retrata a vida dos bóias-frias.

“O atestado de óbito só mostra a causa da morte do trabalhador, mas não o que o levou a ter o problema que o matou. Os bóias-frias se sentem pressionados para trabalhar cada vez mais e vivem em condições de alimentação insuficientes. A raiz do problema é a intensidade da exploração. Eles precisam trabalhar mais e mais para tentar ter renda.”

Cada tonelada de cana-de-açúcar queimada cortada rende em média R$ 2,20 ao bóia-fria. Um cortador eficiente ganha cerca de R$ 600 brutos por mês.

De acordo com Inês Facioli, coordenadora da Pastoral do Migrante de Guariba, os bóias-frias saem muito cansados dos canaviais e têm problemas de saúde por isso. “Um deles teve cãibra na semana passada no curso de alfabetização e ficou se contorcendo. Cãibras são muito freqüentes.”

Trabalhadores ouvidos pela Folha disseram que as dores são comuns no dia-a-dia e que as histórias de mortes no campo são uma rotina (leia texto nesta página).

Por causa das mortes em seqüência, Valente disse que não está descartada a possibilidade de pedir a exumação dos corpos dos trabalhadores rurais.

A medida, segundo Marco Aurélio Guimarães, 35, diretor do Centro de Medicina Legal e docente de bioética da FMRP (Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto), da USP, pode não surtir o efeito desejado, por causa do avançado estado de decomposição dos corpos. “Como as mortes já ocorreram há algum tempo, a exumação pode não resolver.”

A Unica (União da Agroindústria Canavieira) informa, em nota enviada à Folha, que as situações “não devem ser generalizadas, alertando para o risco de conclusões precipitadas: antes é preciso estudar em detalhes as circunstâncias e os fatores envolvidos em cada caso” (leia texto ao lado).

Banner Revistas Mobile