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Os novos e velhos problemas da cana

A polêmica que se instala em torno das relações trabalhistas entre bóias-frias e produtores de cana-de-açúcar é mais complexa do que pode parecer à primeira vista. O lado visível do grave problema social que representa os amontoados de trabalhadores que saem dos seus Estados para cortar cana, em safras que vão liberar novamente esta mão-de-obra seis a oito meses depois, e o centro das reivindicações do movimento sindical e dos movimentos sociais ligados ao setor, é a exigência de produtividade. A mecanização desse setor teve um efeito às avessas para o trabalhador braçal: os usineiros, que antes da mecanização exigiam oito toneladas de cana colhida por dia, por trabalhador, passou a usar a referência da produtividade da máquina para aumentar gradativamente as exigências de produtividade humana. Hoje um patrão pode exigir o corte de 10 a 20 toneladas por dia per capita – varia de acordo com a região, mas de qualquer forma resultou no aumento do esforço físico e do número de horas trabalhadas por cortador de cana.

As relações de trabalho são rigorosamente as mesmas que fizeram outras monoculturas que existiram no país: há um intermediador de mão-de-obra, que percorre os Estados mais pobres – hoje eles atuam em especial no Norte e no Nordeste. São escolhidos para o trabalho, de preferência, os mais jovens. Ao entrar no ônibus para ir até a cidade onde o trabalho é contratado, o cortador de cana já faz a primeira dívida com o “gato”, a de transporte. O “gato”, por sua vez, ganha em média R$ 60 por cada aliciado dos empregadores. Não é incomum também que ele seja o responsável pela venda de suprimentos para os trabalhadores. Tornam-se “donos” dessa mão-de-obra conforme as dívidas se acumulem.

No Estado de São Paulo, ao longo da mecanização, houve um aumento simultâneo da formalidade do trabalho. O cortador é contratado como trabalhador eventual. Mas, segundo Luiz Bassegio, da Pastoral do Migrante, essa formalização foi praticamente anulada pelas exigências de concorrência do cortador de cana com as máquinas. Como se ganha por tonelada cortada (em média R$ 2,5 a R$ 3 por tonelada) e existe uma meta mínima de corte, o cortador é obrigado a trabalhar mais horas. A partir da mecanização do corte de parte da cana, os empregadores começaram também a cobrar do cortador cortes mais rentes ao chão, semelhantes aos feitos pela máquina e mais trabalhosos.

Existem, nas culturas de cana-de-açúcar, fatos que remetem esses trabalhadores ao século XIX. A “tonelada” é medida pelo que se chama de “triângulo”, na verdade uma medida de tamanho de cada cana cortada. Supõem-se que um “x” de braçadas com a mesma medida pese a tonelada. Recentemente, o Sindicato de Trabalhadores Rurais de Cosmópolis, que está entre os mais organizados, conseguiu dos produtores a medição de fato, “por computador”. Segundo Bassegio, no primeiro uso da nova medição constatou-se que as 10 toneladas exigidas por dia de cada trabalhador que eram “medidas” pelo triângulo na verdade pesavam 20 toneladas. Como, até onde se sabe, é só lá que se pesa de verdade a cana, e não se “mede” a tonelada”, supõem-se que nos outros lugares os cortadores estão sendo lesados por essa tradição.

Prostituição, drogas e crime seguem rota do etanol

A outra tradição é a de queimar o canavial antes do início do trabalho de corte. Sem a queimada, é praticamente impossível ao trabalhador, mesmo acostumado com esse tipo de atividade, cortar a cana. Isso expõe não apenas o cortador, mas as cidades próximas, a chuvas de fuligem – que hoje são muito comuns na cidade de Ribeirão Preto, por exemplo. Para o trabalhador, isso não representa apenas a possibilidade de um problema respiratório futuro, mas o risco de ser carbonizado durante a queimada. Não é um acidente de trabalho incomum.

Além das questões que remetem ao passado, a euforia da cana está trazendo também problemas para o futuro. Nesta semana, por exemplo, o Correio Braziliense publicou reportagem assinada pelo repórter Amaury Ribeiro Jr que descreve o resultado do “boom” do etanol sobre municípios do Triângulo Mineiro. Segundo a reportagem, em Delta, em menos de 4 anos, foram plantados 300 mil hectares de cana-de-açúcar em antigas áreas de pastagem ou de agricultura. A cidade, que tem 5 mil habitantes, dobra sua população para 10 mil habitantes no período de colheita. Calcula-se que, apenas para a região do Triângulo, afluam pelo menos 20 mil bóias-frias, principalmente do Maranhão e do Alagoas. A pequena Delta, segundo a reportagem, começou a registrar taxas de homicídio inimagináveis antes da duplicação da produção de álcool Delta de Alagoas. É também o destino de crianças e adolescentes aliciados ou sequestrados para engordar a prostituição na região.

Com a mudança do perfil dos locais de destino dos bóias-frias, que passaram a engrossar a periferia de pequenas ou grandes cidades, o alcoolismo deixou de ser o único problema entre cortadores de cana. O uso do crack por cortadores de cana foi registrado em tese de mestrado em psicologia social de Arlete Fonseca Gonçalves já em 2003. Em 1996, a Polícia Federal já considerava como “rota caipira” 54,7 mil quilômetros quadrados do território paulista, entre os rios Tietê, Paraná e Grande. Arlete aponta estatísticas do Centro de Atendimento Toxicológico (Ceatox) de Botucatu, de 1994 a 1999, que acusavam uma média de 94 atendidos na população rural por dependência de crack, maconha ou cocaína. Um especialista em culturas de cana-de-açúcar pede que se atente, também, para os “maturadores de cana” – são herbicidas que vêm sendo usados há quatro anos para antecipar a colheita. Até agora não se tem idéia do efeito que possa ter sobre o trabalhador que fica em permanente contato com esses produtos.

Daí se conclui que o etanol não é uma solução nem econômica, nem ecológica, sem maiores comprometimentos. Antes que o país vire um imenso canavial, é necessário equacionar relações trabalhistas, de saúde e inclusive as questões urbanas que envolvem a produção do etanol.

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