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Biossegurança

Numa decisão que poderá equiparar o Brasil às mais retrógradas teocracias, a Câmara aprovou um projeto de Lei de Biossegurança que, na prática, proíbe a clonagem terapêutica, uma promessa da ciência para curar doenças degenerativas e até para restaurar órgãos e tecidos avariados. Os senadores têm agora diante de si a responsabilidade de não compactuar com o obscurantismo e permitir que brasileiros possam participar de pesquisas nesse campo promissor da medicina e, principalmente, que tenham o direito de desfrutar dos benefícios que novas tecnologias possam trazer.

Em relação aos também polêmicos organismos transgênicos, a proposta aprovada por acordo de lideranças merece aperfeiçoamentos, mas não parece constituir o retrocesso que muitos proclamam.

A cura definitiva para doenças como diabetes, mal de Parkinson e, se tudo der certo, traumas da medula, além da possibilidade de recuperar corações e fígados comprometidos, é uma perspectiva importante demais para ser abandonada em favor de concepções religiosas idiossincráticas que não são necessariamente partilhadas por toda a sociedade.

O lobby evangélico-católico que se articulou para derrubar a clonagem terapêutica merece, no que toca às suas crenças, profundo respeito, mas isso não significa que seus valores devam ditar as regras de uma República pluralista, laica e que valoriza a vida efetiva, atual, mais do que a mera possibilidade de vida contida num blastocisto, um emaranhado de uma centena de células embrionárias que nem chega a ser implantado num útero e do qual se retiram as células-tronco, capazes de converter-se em vários tipos de tecido.

O despreparo dos parlamentares para até entender o que estavam aprovando fica patente na forma final do texto, que, ao confundir clonagem terapêutica (células-tronco a partir de blastocistos) com terapia celular (células-tronco de menor potencial a partir de cordões umbilicais e outros tecidos), consagra uma contradição que terá de ser sanada.

No que diz respeito aos organismos transgênicos, os pontos mais controversos do projeto são o que reduz o peso de cientistas na CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança) e o que dá ao Ibama, a agência ambiental brasileira, poder de negar ou conceder licença ambiental para a comercialização de produtos transgênicos.

De fato, parece ocioso ampliar demais a CTNBio, um órgão eminentemente técnico, dando a vários ministérios o direito de indicar integrantes. A avaliação política de decisões já está garantida pela criação do CNBS (Conselho Nacional de Biossegurança), a instância decisória final que será composta por 15 ministros.

Quanto ao Ibama, embora institucionalmente desejável que tanto ele como a Anvisa (agência sanitária) concedam pareceres sobre a comercialização, o risco é que o órgão, que se tem posicionado contra os transgênicos, crie sistematicamente obstáculos à liberação. Cabe aqui exigir que o Ibama tome, de fato, decisões técnicas, com critérios objetivos e transparentes. E vale lembrar que, em caso de conflito entre Ibama e CTNBio, caberá recurso ao novo conselho -o CNBS.

Esta Folha é a favor dos transgênicos, observadas as devidas cautelas quanto à proteção da saúde e do ambiente. Defende também a rotulagem obrigatória como forma de dar ao consumidor o direito de decidir. Quanto a isso, o projeto da Lei de Biossegurança aprovado na Câmara parece satisfatório. No caso, porém, da clonagem terapêutica, há muito o que aprimorar.

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