Mercado

Álcool e responsabilidade social

Não é mais novidade o crescente interesse internacional pelo álcool combustível brasileiro. O produto, que se apresenta como um complemento ideal para a diminuição de emissões nocivas à saúde, além de se apresentar como uma alternativa à gasolina, ganhou ainda mais força nos países que precisam cumprir o Protocolo de Kyoto de redução de emissões de CO2 na atmosfera. Porém, as exigências de como os canavieiros e usineiros terão de se organizar para atender às novas demandas, os investimentos necessários e o potencial para geração de negócios e empregos têm mascarado uma total falta de atenção para os cuidados mínimos com a saúde e segurança dos trabalhadores envolvidos com o corte de cana. Isso sem falar no impacto ambiental da monocultura para a preservação do solo e do ambiente no entorno.

Estas questões infelizmente são colocadas em segundo plano nas discussões sobre o modelo auto-sustentável de matriz energética que alçaria o Brasil à posição de maior fornecedor mundial de álcool. Mas são aspectos que podem se tornar um empecilho gravíssimo para o desenvolvimento sustentado do setor sucroalcooleiro. Na União Européia ou no Japão, países que já demonstraram interesse na tecnologia para produção de álcool desenvolvida no Brasil, a questão do tratamento dispensado aos trabalhadores é algo seríssimo.

Diferentemente do Brasil, as escolhas do consumidor desses países têm o poder de derrubar empresas e setores caso a opinião pública julgue que o processo de produção de determinada commodity fere procedimentos básicos adotados nas convenções internacionais do trabalho ou na Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Infelizmente, alguns empresários da cadeia do álcool e a sociedade brasileira ainda não se deram conta que, independentemente do modelo que venha a ser adotado pelos usineiros para fazer frente às demandas nacionais e internacionais do álcool, as questões sociais e ambientais de produção precisam caminhar junto. Em nome das exportações e da geração de empregos – calcula-se 500 mil novos postos de trabalhos nos próximos anos – cometem-se crimes que ficam infelizmente na surdina.

Não é de hoje que a maioria dos trabalhadores rurais envolvidos com o corte de cana é explorado, não têm carteira assinada, recebem menos de um salário mínimo, dormem em locais sem quaisquer condições de higiene e segurança. Alguns chegam a ser tratados como escravos porque precisam pagar pela comida, transporte e local para dormir.

O crescimento desenfreado das plantações de cana de açúcar – ampliação da área de 6,5% na safra 2004/2005 em relação à anterior, chegando a 3,63 milhões de hectares, e produção 5,4% superior, atingindo 254,81 milhões de toneladas, segundo dados do Instituto de Economia Agrícola (IEA) – coloca mais em evidência a falta de cuidados mínimos com o trabalhador dos canaviais. Felizmente, nos últimos anos, o Ministério Público tem cumprido seu papel de denunciar e exigir reparação dos males causados aos trabalhadores e as irregularidades começam a ganhar mais espaço na mídia. No dia 22 de agosto, novamente, mais 31 empregados de fazendas de cana de açúcar foram encontrados em situação irregular de trabalho no interior de Bauru. As denúncias constantes só mudam de endereço e se repetem mês a mês.

Se o Brasil pretende se tornar fornecedor de álcool para o mercado mundial, precisa encarar com maior seriedade os aspectos ambientais, trabalhistas e sociais envolvidos com a produção. Os danos na imagem do álcool brasileiro de uma prática trabalhista que fere princípios básicos e universais dificilmente seriam revertidos.

Na cadeia do café, por exemplo, os produtores se anteciparam a esse tipo de preocupação e trataram de garantir certificações próprias para manter as exportações ou conquistar novos mercados. Em outras palavras: investir em responsabilidade social tornou-se condição para exportar. Hoje, no caso do café, a certificação determina a aceitação do produto no mercado europeu. Muitas associações de produtores, inclusive, criaram selos próprios para identificar produtos que respeitam normas de saúde e higiene dos trabalhadores e garantem a não existência de trabalho escravo ou infantil. Outros optam por códigos de conduta aceitos globalmente como o Utz Kapeh, que estabelece um conjunto de critérios econômicos, sociais e ambientais para a produção responsável de café.

A norma internacional SA 8000 já é reconhecida por indústrias para avaliar estes procedimentos e abre ao setor sucroalccoleiro a possibilidade de adequar esta norma ou outras próprias do ramo em questão, justamente com o objetivo de preservar este mercado potencial.

Não é só a ação governamental que irá provocar esta mudança de atitude. Este é um desafio que os empresários do álcool precisam encarar para garantir a sustentabilidade do negócio.

*Presidente da SGS do Brasil, subsidiária do Grupo SGS

Este artigo é dedicado à memória de Mario Bugliani, agricultor da região de Ribeirão Preto e pioneiro na luta pelos direitos dos trabalhadores do setor sucroalcooleiro.

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