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A dor destilada nos canaviais

A primeira reportagem, com o testemunho do jornalista (acima, em detalhe): A sede do cortador de cana é implacável

Depois de quatro semanas de viagens por municípios do Vale do Jequitinhonha, em Minas, e do interior de São Paulo, o Estado de Minas dedicou, entre 3 e 7 de maio de 2006, 11 páginas para descrever o contraste entre o esplendor econômico da indústria brasileira do açúcar e do álcool e a extenuante jornada da legião de migrantes temporários que, com seus podões, ano a ano, garantem o abastecimento das usinas.

Denominada “Deserdados da cana”, a série de reportagens mostrou que, enquanto a modernidade avança rapidamente nas instalações industriais, na sofisticação tecnológica do cultivo e na captação de investimentos nas bolsas de valores, o cortador de cana se mantém na esfera da lavoura arcaica. Permanece sujeito a esquemas viciados de recrutamento de mão-de-obra, nos quais resistem os agenciadores conhecidos como “gatos”, alimenta-se mal, aloja-se em instalações precárias, não tem assistência à saúde e frequentemente é transportado ao local de trabalho sem padrões mínimos de segurança.

O mergulho na intimidade desses operários dos canaviais ajudou a entender a esquizofrenia do setor sucroalcooleiro. Falamos de pobres moradores da zona rural ou da periferia de cidades que não oferecem oportunidades razoáveis de educação e de trabalho para a própria população. São regiões de baixa atividade econômica, dominadas pela agricultura de subsistência. A mão-de-obra barata e ávida por uma remuneração contínua durante oito meses de safra compensa a baixa produtividade do corte manual em relação às caríssimas e complexas máquinas colhedoras de cana-de-açúcar.

A série Deserdados da cana ouviu especialistas que acompanham o fenômeno do trabalho migrante no setor de açúcar e de álcool. Eles sustentam que a manutenção do corte manual está associada ao regime de pagamento por produção a que estão submetidos os cortadores. A necessidade de ganhar mais impele o trabalhador à produtividade máxima, com prejuízo de intervalos para descanso e alimentação. O resultado desse esforço sob forte calor são cãibras, dores musculares, lesões na coluna e, no limite, paradas cardíacas. Oito trabalhadores morreram por esse motivo durante o corte de cana ou pouco depois da jornada diária de trabalho nos canaviais paulistas entre 2004 e 2005. Cinco deles eram migrantes temporários procedentes do Vale do Jequitinhonha.

A qualidade da série do EM foi reconhecida pela comissão julgadora da 29ª Edição do Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, promovido pelo Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, pela OAB-SP e pelo Vicariato da Comunicação da Arquidiocese de São Paulo. “Deserdados da cana” recebeu o prêmio na categoria Jornal impresso.

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