Recente artigo na publicação acadêmica Applied Energy destaca que os biocombustíveis são estratégicos para fazerem veículos híbridos não plug-in (HEV) ou plug-in (PHEV) poluírem menos que um 100% elétrico.
O resultado vale para a Europa e chama a atenção geral diante o cenário de avanço dos motores elétricos ao mesmo tempo em que se anuncia a aposentadoria dos motores a combustão.
Para destrinchar o assunto, o JornalCana entrevista o químico industrial e doutorando em Bioenergia Marcelo Gauto. Especialista em petróleo, gás e energia, ele é autor de livros e é referência nacional quando se trata de combustíveis.
JornalCana: Em conteúdo a partir de artigo publicado recentemente na Applied Energy, o sr. destaca que um veículo híbrido não plug-in (HEV) ou Plug-in (PHEV) movido a biocombustíveis polui menos que um 100% elétrico na Europa. Esse resultado revela que o posicionamento europeu em relação aos 100% elétricos pode ser direcionado aos híbridos movidos a biocombustíveis?
Marcelo Gauto: Observe que dado importante este artigo publicado pelos pesquisadores suecos nos traz: um veículo puramente elétrico tem emissões de gases de efeito estufa maiores do que os híbridos movidos a biocombustíveis.
Mesmo num cenário de matriz elétrica com baixíssima intensidade de carbono, simulado por eles no estudo, o resultado é o mesmo.
Isso ocorre porque a fabricação da bateria de um veículo elétrico é intensiva em energia, que acaba se refletindo em emissões consideráveis quando se analisa o ciclo de vida completo da fabricação e uso do carro e dos combustíveis. Quanto maior a bateria, maior a emissão de gases poluentes para fabricá-la.
Os veículos híbridos utilizam baterias menores que, associadas com os biocombustíveis, apresentam efeitos sinérgicos positivos, expressos num melhor rendimento do biocombustível em km/L rodado.
Esse resultado vai, no mínimo, gerar muita discussão a respeito dos subsídios que os europeus dão hoje aos elétricos movidos puramente por bateria, se não seria melhor investir nos híbridos.
LEIA MAIS > Atvos investe em estrutura de combate à incêndios e queimadas
JornalCana: Este mesmo estudo no Brasil teria resultado diferente, considerando que a matriz elétrica brasileira é mais limpa do que a europeia e que nosso etanol é de cana-de-açúcar?
Marcelo Gauto: O grupo de pesquisa em Bioenergia da Unicamp, o qual faço parte, fez uma simulação preliminar usando a intensidade de carbono média do nosso etanol, verificada nas usinas certificadas pelo RenovaBio, e da nossa matriz elétrica, usando dados da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), e o resultado observado é o mesmo: um híbrido a etanol no Brasil possivelmente gera menos emissões do que um veículo puramente elétrico.
Nós ainda estamos refinando e ampliando o estudo de modo a publicar um artigo científico sobre o tema no segundo semestre de 2021.
A observação preliminar, contudo, já demonstrou que um híbrido movido a biocombustíveis no Brasil tem vantagens similares às observadas no artigo dos pesquisadores suecos, o que reforça a importância dos biocombustíveis neste contexto de eletrificação da frota de veículos e da importância de se fazer uma análise completa do ciclo de vida do carro e do combustível para nortear as políticas públicas.
JornalCana: Em outra publicação, o sr. menciona dados em gCO2e/km. Qual é a diferença entre gCO2e/MJ (grama de CO2 equivalente em megajoules) e gCO2e/km nas divulgações das emissões? O que cada conjunto de siglas significa?
Marcelo Gauto: Joule é uma unidade de medida de quantidade de energia, então quando falamos em g CO2e/MJ estamos nos referindo a intensidade de emissões de carbono equivalente associadas a uma determinada quantidade de energia, no caso de 1 Mega Joule (1 MJ).
Cada combustível tem uma quantidade de energia que lhe é intrínseca por unidade de massa ou volume. Exemplo: um litro de etanol hidratado tem 21,3 MJ de energia.
Se você consome 10 litros de etanol para fazer uma viagem, terá consumido 213 MJ de energia. Neste percurso você terá emitido certa quantidade de CO2 para atmosfera associada a determinada quilometragem percorrida.
Levando estes parâmetros em consideração, pode-se chegar nas emissões equivalentes por quilômetro rodado, g CO2e/km, cuja percepção para o usuário final é o que importa, ou seja, é quanto você emite de gás carbônico para cada quilômetro rodado com o seu automóvel.
LEIA MAIS > Raízen irá construir segunda planta de etanol 2G
JornalCana: Em estudo do Argonne National Laboratory sobre as emissões dos combustíveis associadas ao ciclo de vida deles nos EUA, analisado pelo sr. recentemente, o uso de eletricidade “vence”, têm menores emissões, seguido pelo E85 (combustível com 85% de etanol de milho) em gCO2/km. Significa que o ciclo de vida da eletricidade que abastece o motor emite menos que o etanol de milho em seu ciclo de vida?
Marcelo Gauto: É exatamente isso, como os motores elétricos são muito mais eficientes do que os de combustão interna, considerando apenas uma análise sobre os combustíveis, as emissões dos veículos elétricos são menores. Contudo, há uma “pegadinha” nesta análise, pois ela não considera as emissões associadas à fabricação do automóvel em si.
Como fora discutido anteriormente, quando você leva em consideração a fabricação do carro, das baterias e demais componentes associados, o veículo elétrico passa a ter maiores emissões do que um com motor de combustão, segundo a literatura.
A bateria de um Tesla S de 60 kWh, por exemplo, tem 24 quilogramas de lítio, 24 de níquel, 24 de manganês e 13,5 de cobalto, todos metais advindos da mineração e com grande necessidade de energia e emissões associadas.
Além disso, há outras questões socioambientais e geopolíticas negativas relacionadas à dependência destes metais. É por isso que se estuda muito a possibilidade de motores elétricos movidos a biocombustíveis (hidrogênio verde, etanol, entre outros) que não dependam de baterias como fonte propulsora.
JornalCana: Para fins de comparação, o sr. lembra que o etanol brasileiro emite “da fazenda à roda” 65 gCO2e/km (considerando rendimento de 9 km/L no motor). Como se chega a esse resultado?
Marcelo Gauto: Observe que estamos falando apenas de emissões associadas ao ciclo de vida do combustível, não entra aqui as emissões relacionadas a fabricação do automóvel.
Vale lembrar que, no caso dos biocombustíveis, o gás carbônico emitido durante a sua queima é totalmente reabsorvido durante o crescimento do vegetal no campo, sendo assim as emissões seriam zero, correto?
Porém, há emissões associadas ao uso de combustíveis fósseis nas máquinas no campo (que usam diesel), nos insumos utilizados (fertilizantes, herbicidas, etc), entre outros, que fazem com que a emissão não seja totalmente nula, pelo menos por enquanto.
LEIA MAIS > Maior emissora de CBIOS do setor encerra safra 20/21 com números significativos
Nas usinas certificadas pelo RenovaBio, em média, percebe-se que a intensidade de carbono está próxima dos 28 g CO2e/MJ.
Aqui são necessárias algumas conversões para expressar este número em “emissões por quilômetro rodado”:
Intensidade de emissões de carbono no ciclo de vida do etanol no Brasil: 28 g CO2e/MJ
Energia disponível em 1L de etanol hidratado: 21,3 MJ/L
Rendimento do combustível no veículo: 9 km/L
Emissões, em gCO2e/km = (28*21)/9 = 65
Se o carro a etanol fizer 10 km/L, as emissões reduzem para 59 g CO2e/km, por exemplo.
Observe que o etanol brasileiro emite muito menos do que o de milho norte americano ou do que a gasolina e até mesmo menos do que um carro elétrico rodando nos EUA, mesmo não computando as emissões da bateria, ou seja, nosso biocombustível é excepcional.
JornalCana: Pode-se dizer que, sendo assim, o etanol brasileiro emite menos 46 gCO2e/km que o motor elétrico dos EUA? (Cheguei a esse número subtraindo 65 de 111).
Marcelo Gauto: O valor é um pouco menor, porque no número dos EUA estão incluídas as emissões de fabricação do veículo. Podemos dizer, grosso modo, que um veículo com motor a combustão no Brasil, utilizando etanol, emite 35% menos gases de efeito estufa do que um puramente elétrico nos EUA. Isso reforça como o Brasil está bem posicionado na transição energética, com uma cadeia de biocombustíveis de baixa intensidade de carbono, geradora de muito emprego e renda. Nós já temos o combustível do futuro, ele se chama etanol. É o Brasil dando bom exemplo ao mundo.
Delcy Mac Cruz