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"100 anos de Etanol, um biocombustível do passado, do presente e do futuro"

Confira artigo de Maurílio Biagi Filho

"100 anos de Etanol, um biocombustível do passado, do presente e do futuro"

Em meio às crescentes preocupações com as mudanças climáticas, o etanol volta a ganhar destaque e protagonismo no ano em que comemora o seu centenário.

Muitos ainda acreditam que ele nasceu a partir do Programa Nacional do Álcool (Proálcool), em 1975, o mais completo e eficiente programa de energia renovável lançado até hoje no mundo, mas ele é bem anterior a isso.

Aproximadamente 50 anos antes da notoriedade que ganhou com o lançamento do Proálcool, este combustível produzido a partir da cana-de-açúcar já era consumido.

Há relatos históricos que mostram que em meados da década de 1920, um Ford de 4 cilindros participou de uma competição no Rio de Janeiro movido à álcool em uma primeira experiência promovida pelo governo através da Estação Experimental de Combustíveis de Minérios (EECM).

O motivo dessa iniciativa foi a preocupação com a dependência da importação de gasolina no país. Chegou-se até a ser encomendado um estudo de desenvolvimento de motores à álcool para que pudesse embasar uma legislação sobre o tema. Nesse mesmo período, a Usina Serra Grande, em Alagoas, já produzia experimentalmente o USGA, biocombustível à base de álcool etílico, éter etílico e óleo de mamona que, a partir de 1927, abasteceu veículos em bombas espalhadas por Recife e Maceió.

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Em 1931, ainda sofrendo as consequências da crise de 1929, o governo brasileiro decretou a mistura de 5% de álcool nacional à gasolina, mas logo depois os preços da gasolina despencaram e o álcool sumiu do mercado, voltando ao cenário após a Segunda Guerra Mundial por conta da dificuldade de importação do petróleo. Em alguns estados a porcentagem de álcool na gasolina chegou a 42% nessa época.

A nova guinada nessa trajetória se deu na década de 1970, e dessa eu me lembro muito bem porque participei, junto com muitos, de todo o processo. Ao contrário do que se pensa, o Proálcool foi um programa que nasceu do pessoal do petróleo e não da cana. Ele começou de um movimento que surgiu em 1973, através da Associgás – a Associação das Distribuidoras de Gás Liquefeito de Petróleo, que, na época, tinha o Dr. Lamartine Navarro como vice-presidente.

Dr. Lamartine, engenheiro, não era produtor, mas sempre foi um defensor do “combustível verde e amarelo”. Assim, a pedido do governo à época liderou um estudo sobre a utilização de fontes não convencionais de energia. A Associgás se transformou no fórum de debates sobre a crise do petróleo, e contava com a colaboração de vários profissionais, entre eles Maurílio Biagi – meu pai, a quem acompanhei de perto.

A conclusão do grupo resultou no documento intitulado “Fotossíntese como fonte de energia”, entregue ao Presidente Geisel em março de 1974, que se tornaria a semente do Proálcool. Desde o início, me voluntariei com muitos outros na construção desse programa. Fizemos uma verdadeira cruzada pelo Brasil para mostrar suas vantagens. Um grande impulso foi um decreto governamental que estipulou a equivalência do valor de um litro de álcool com um quilo de açúcar, que tinham uma disparidade grande de preços na ocasião. Essa equidade foi fundamental para o sucesso do programa e para que este biocombustível deixasse de ser um subproduto.

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Em 1978, a indústria automobilística, com pioneirismo da Fiat, lançou um carro com motor movido exclusivamente a álcool, o que alavancou ainda mais o programa que já estava sendo fortalecido também pela conjuntura econômica com preços do mercado internacional de açúcar muito baixos, provocando um excedente de cana.

Assim, o programa já começou dando grandes saltos e rapidamente o álcool não era mais somente uma mistura carburante para a gasolina. No final desta década, a produção de álcool atingiu 12,3 bilhões de litros, cumprindo seu papel de reduzir os efeitos da crise do petróleo no Brasil.

Na segunda metade dos anos 1980, o preço do petróleo começou a cair e do açúcar subir. O álcool combustível ficou menos vantajoso financeiramente não só para o consumidor como também para o produtor. Vale ressaltar que nesse período, 98,6% dos carros vendidos no Brasil eram movidos à álcool. O biocombustível começou a faltar nas bombas e essa desvantagem comercial foi utilizada como narrativa do pessoal do Petróleo para justificar o desabastecimento ocorrido.

Realmente faltou álcool nos postos, mas o motivo foi bem outro. O Departamento Nacional de Combustível (DNC) reduziu pela metade a entrega do álcool nas centrais de distribuição. Em Ribeirão Preto, fui pessoalmente conferir e vi o documento com a assinatura do DNC. Foi uma falta provocada, oficial e com papel timbrado. E tínhamos só na região quase 300 milhões de litros estocados. Eu denunciei isso, a imprensa publicou, mas não virou nada.

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Alguns anos antes, a Petrobrás já havia manifestado sua preocupação de que com essa proporção de consumo de álcool x diesel e gasolina, as refinarias brasileiras não teriam condições de adequar o craqueamento do petróleo. Mas o governo convocou uma reunião entre representantes da empresa de engenharia Zanini /Foster Wheeler, indústrias de base que havia feito o projeto das refinarias de Paulínia e de Duque de Caxias, e da petroleira, na qual ficou comprovado que tecnicamente teria condições sim de mudar o craqueamento, isto é, produzir mais diesel e menos gasolina. Isso incomodou a Petrobrás e daí para frente o álcool, que foi a solução para a estatal na crise da década de 70, passou a ser um incômodo, de aliado passou a ser concorrente forte. E realmente o apogeu do álcool atrapalhava o cômodo mix da produção petroleira.

A inciativa do DNC foi só a coroação desse processo. Assim quebrou-se a espinha dorsal do programa e o carro a álcool em poucos anos praticamente sumiu do mercado. Isso custou um atraso de dezenas de anos para o setor sucroenergético, que não se organizou, e nem tinha como, para suportar a enorme sobra de etanol. Cometeu-se um erro de comunicação histórico por falta de uma estratégia para esclarecer o que realmente acontecia, deixando prevalecer a narrativa do pessoal do petróleo, que desmoralizou o combustível álcool à época. O cenário só começou a reverter quando, em 2003, foi lançado o carro flex, desta vez tendo como pioneira a Volkswagen. Até o final de 2023, mais de 22 milhões da frota de 34 milhões de veículos do país eram flex.

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Muito antes disso, na década de 1990, eu já andava com uma BMW “à gasolina” somente abastecendo-a com etanol, sem fazer qualquer modificação no motor ou na injeção. Uma vez fui buscar o ministro Pratini de Morais com ela no aeroporto e ele ficou perplexo. Quem sabe isso inspirou a Volkswagen. Brincadeiras à parte, eu acredito tanto no etanol que desafiei em um encontro com jornalistas a todos abastecerem seus carros com álcool, mesmo sendo à gasolina de fábrica. Alguns abasteci de pronto na usina completando com etanol o tanque, e me responsabilizei caso tivessem algum prejuízo. Nada aconteceu com os veículos.

Mas o etanol é muito mais versátil. Ele é usado em aeronaves agrícolas, na produção de bioplásticos, na aviação comercial por meio do SAF (Sustainable Aviation fuel) e em carros elétricos movidos a células de hidrogênio. Hoje, a diversificação da produção sucroenergética também é enorme. O uso da bioeletricidade gerada a partir do bagaço da cana mudou o cenário da matriz de energia renovável. Temos ainda o gás biometano e o etanol de segunda geração como exemplos para ampliar o uso dos subprodutos da cana, garantindo novas receitas e contribuindo ainda mais para a redução de emissões de carbono.

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O nosso desafio agora é fazer uma comunicação correta para que finalmente a gente consiga conscientizar o consumidor de que o etanol é melhor para o meio ambiente e que, mesmo que seja mais caro em algumas épocas, vale a pena. Segundo a Única, o uso do etanol hidratado (utilizado diretamente no tanque dos veículos) e do etanol anidro (adicionado à gasolina) conseguiu evitar mais de 240 milhões de toneladas de gases causadores do efeito estufa. E esse é só um dos benefícios desse produto 100% nacional, que proporcionou muitos avanços tecnológicos, ganhos econômicos, sociais, ambientais e que ainda tem muito a oferecer. Hoje o setor canavieiro atingiu o que chamamos de economia circular, aproveita-se tudo.

Quando o assunto é transição energética, já passou a hora do etanol voltar ao protagonismo, que aliás nunca deveria ter perdido, e do Brasil assegurar sua posição de liderança nesse mercado. Estamos com a faca e o queijo – melhor dizendo, a cana – na mão: é só cortar!

Maurílio Biagi Filho

Empresário e membro do Conselho Superior do Agronegócio da Fiesp

Artigo originalmente publicado pela Agência UDOP de Notícias