Em meio a tanta notícia sobre eletrificação, tem ganhado força as células combustíveis a etanol. Não se trata de tema novo, e nem objeto de discussão ou de projeto acadêmico.
Para se ter ideia, montadoras como a Nissan e empresas como a Bosch já anunciaram ou desenvolvem pesquisas sobre essa tecnologia.
E trata-se de uma solução cujos resultados são de viés duplo. Isso porque permite a entrada no Brasil dos motores movidos a eletricidade, que é uma tendência mais do que natural. O outro viés é que contempla o etanol como estratégia para fazer circular esses motores.
Para entender de vez o que é célula combustível a etanol e sua tendência no Brasil e no mundo, JornalCana entrevista Gonçalo Pereira. Formado engenheiro agrônomo, ele é referência internacional sobre o universo de bioquímica e de genética e melhoramento de plantas, temas dos quais possui respectivamente pós-doutorado e mestrado.
Na verdade, Pereira empregou – e emprega seus conhecimentos – no setor sucroenergético. Por exemplo: foi VP de ciência e tecnologia na GranBio e ajudou no desenvolvimento do etanol 2G da empresa.
E há 24 anos é professor titular da Unicamp, onde, recentemente, passou a integrar time de profissionais que, afirma, foi formado para colocar a “mão na massa” para desenvolver tecnologias necessárias para a eletrificação por biocombustíveis.
Feita a apresentação, segue a entrevista com Gonçalo.
JornalCana – Muito se tem falado em célula combustível a etanol. O que é e qual sua viabilidade de implantação no curto prazo?
Gonçalo Pereira – Enorme, se tivermos as políticas públicas adequadas. As células SOFC – de óxido sólido – já existem para várias aplicações estacionárias, que usam diversos combustíveis e convertem em eletricidade.
Ou seja, não é uma tecnologia que ainda tem que ser desenvolvida, mas uma tecnologia que tem que ser adaptada para o setor automotivo. Infelizmente, a sede da indústria automobilística, onde as decisões são tomadas, não fica no Brasil.
E, principalmente na Europa, eles decidiram que vão partir para a eletrificação tendo a bateria de lítio como reserva de energia. Assim, se tivermos as políticas certas poderemos fazer com que a nossa bateria seja o tanque de etanol.
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JornalCana – Como devem ser essas políticas?
Gonçalo Pereira – Para começar, devemos ter uma política de transporte público baseado nessa tecnologia. Como ônibus, caminhões e vans são maiores, a instalação desses equipamentos é muito mais fácil.
Além disso, quando estamos falando de frotas comerciais, o preço do veículo não é o mais importante. Importante é o custo do quilômetro rodado ao longo da sua vida útil.
Ou seja, se o Governo gerar a política adequada, com incentivos para o desenvolvimento e aplicação das células combustíveis para o transporte público, por exemplo, poderíamos ter a compra de frotas baseada nessa tecnologia, o que incentiva a indústria a investir nas soluções.
Assim, um ônibus SOFC, por exemplo, consumiria relativamente menos do que o motor diesel e não teria emissões tóxicas, o que limparia as cidades e contribuiria, de forma extraordinária, para a saúde da população. Por outro lado, a nossa indústria estaria trabalhando com uma tecnologia de ponta, o que aumentaria muito a sua interação com a academia e a geração efetiva de novas soluções, que poderiam ser exportadas para o mundo.
Voltando ao prazo, se fizermos as coisas certas, daria para ter veículos no mercado no prazo entre 3 e 5 anos.
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JornalCana – O senhor integra um time formado para colocar a “mão na massa” para desenvolvimento das tecnologias necessárias para a eletrificação por biocombustíveis. Como irá funcionar?
Gonçalo Pereira – O time vai trabalhar apresentando soluções e recebendo as demandas da indústria e da sociedade. É formado por empresas e a academia, com profissionais experientes, e de altíssimo nível, associados a pesquisadores qualificados.
Não existe solução se não houver problema e os problemas têm que ser trazidos pela indústria.
Por outro lado, a associação da indústria com a academia, no Brasil, é muito incipiente e cheia de desconfiança.
Com esse time, que temos gente atuando nas duas pontas, temos a possibilidade de quebrar essa desconfiança e buscar as soluções otimizadas, no menor espaço de tempo possível, conversando tanto com as empresas como com os formuladores das políticas públicas.
É importante observar que esse é um movimento também dentro da Sociedade de Engenheiros Automotivos (SAE), que pode trazer um grande avanço para o país.
Precisamos muito disso. Uma eventual entrada dos carros elétricos a bateria no país, de forma desordenada, poderá significar a morte da nossa indústria, não só automobilística, mas também a do etanol.
É muito importante ficarmos atentos e reagirmos da forma certa, que não seria apenas com as ferramentas tributárias, mas com opções tecnológicas desejáveis para o mercado consumidor.
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JornalCana – O veículo elétrico é inevitável e o senhor mesmo já relatou que ele é ótimo, mas que a bateria tem que ser de biocombustível? Por que?
Gonçalo Pereira – O motor elétrico é muito mais eficiente do que o motor a combustão. Algo como 2,5X mais eficiente. Assim, é interessante que utilizemos esses motores para movimentar os nossos automóveis.
Coisa semelhante aconteceu nas usinas de cana, onde hoje temos boa parte da eletrificação dos equipamentos. Portanto, carro elétrico faz muito sentido.
Entretanto, o motor elétrico não precisa de ser alimentado por uma bateria mineral, como as baterias de lítio e cobalto. Elas precisam ser alimentadas por uma corrente elétrica, mas essa pode ser produzida de outras formas.
A principal forma seria exatamente as Células Combustível, cuja aplicação automobilística é hoje de dois tipos: PEM e SOFC. Carros equipados com célula PEM já estão no mercado, sendo o Mirai, da Toyota, o modelo mais famoso.
Entretanto, essas células utilizam metais nobres como catalisadores (platina, por exemplo), operam a baixa temperatura e precisam de usar hidrogênio super puro como combustível.
Esse hidrogênio é extremamente caro para ser produzido, armazenado e transportado, além de exigir um grande conjunto de equipamentos e normas de segurança. Já com as células SOFC a coisa é diferente.
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JornalCana – Como assim?
Gonçalo Pereira – Elas são feitas com ferro ou cerâmica e operam a altas temperaturas, o que permite a utilização de um hidrogênio pouco puro, produzido em reformadores de menor porte, que inclusive podem ser embarcados.
Nesse caso, o sistema retira os elétrons do etanol e formam uma corrente elétrica que vai fazer o motor elétrico funcionar.
Do ponto de vista prático, o etanol seria a bateria e o seu uso dessa forma faz com que o carro tenha mais do que o dobro da eficiência. Ou seja, se ao usar o etanol na combustão faria 9 km/l, agora vai fazer 25km/l.
JornalCana – O RenovaBio pode impulsionar o universo do etanol e, por consequência, as células combustíveis a etanol? Como?
Gonçalo Pereira – Muito. Hoje o preço do etanol é 0,70 o da gasolina. Ponto. Se a gasolina aumentar, o usineiro vai usar a oportunidade para aumentar o etanol também.
Entretanto, se o CBIO se valorizar, o usineiro vai ter interesse em produzir mais etanol para produzir mais CBIO. Assim, você começa a desatrelar uma coisa da outra.
Por exemplo, pode ser que o preço do CBIO esteja tão bom que vale a pena vender o etanol a 60% do preço da gasolina para escoar mais etanol.
Entretanto, para isso o CBIO tem que começar a ser comercializado como se fosse uma moeda virtual. Temos que começar a comprar e vender CBIOs a partir de aplicativos simples, nos nossos celulares.
Tem que ser um ativo desejado pelo mercado, que não necessariamente entende o que ele significa, mas percebe que ele tem valor e liquidez. Temos que usar o gosto pelo jogo, presente na natureza humana, para valorizar essa moeda. Semelhante ao que aconteceu com o Bitcoin, mas de uma forma que faz o bem para toda a sociedade, ao ajudar a descarbonizar a atmosfera.
Nesse sentido, a entrada de carros elétricos a etanol também poderá ser extraordinária. Considerando a enorme frota flex que temos, o preço do etanol não poderá subir muito, ficando no limite do 0,7 da gasolina. Imagine agora o consumidor que tem um carro capaz de fazer 25km com um litro de um combustível que tem o preço 30% inferior ao da gasolina? Esse é um imenso atrativo para o mercado consumidor e uma janela de oportunidade para que a indústria lance esses veículos no Brasil.
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JornalCana – Etanol 2G: como um dos criadores da planta da GranBio, como o senhor avalia esse biocombustível no Brasil, agora que a Raízen anuncia sua segunda planta?
Gonçalo Pereira – Melhor impossível. O etanol 2G é a democratização da produção de combustível líquido, que é, como falamos acima, o melhor tipo de bateria que pode existir.
Alta densidade energética e facílima de transporte. É a isso que se deve o sucesso do petróleo. Entretanto, o Petróleo está concentrado em poucos países. Quem não tem, tem que importar.
Com o etanol de primeira geração aconteceu algo semelhante. Para produzir com eficiência, é necessário ter solo, água e as condições agrícolas adequadas.
Agora, com a segunda geração, tudo muda. Pode-se aproveitar todos os restos agrícolas, assim como restos de floresta, do setor moveleiro, etc. Ou seja, trata-se de um combustível que poderá ser produzido no mundo todo.
A primeira onda do etanol 2G se deu por causa do aumento do preço do petróleo depois da crise de 2008 e os avanços no desenvolvimento de enzimas e leveduras geneticamente modificadas.
Estava tudo pronto e a oportunidade incentivou vários grupos econômicos, por todo o mundo, para fazer imediatamente plantas industriais, renunciando às etapas de planta piloto e de demonstração.
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É importante mencionar que a parte cara do investimento da usina está na etapa de pré-tratamento e movimentação de biomassa. Entretanto, como a indústria tinha a experiência secular do setor de papel e celulose, que já tinha sistematizado todas essas operações, ninguém prestou muita atenção a isso.
Imaginou-se que seria só contratar empresas de tecnologia robustas e experientes e começar a produzir. Porém, esses pioneiros não perceberam uma coisa que hoje parece óbvia: as diferenças brutais entre as biomassas. A Indústria de papel e celulose trabalha com madeira, que é muito cara para produzir etanol.
A indústria 2G vai trabalhar com palha e bagaço, vinda de cultura de ciclo curto ou semi perenes, que possuem uma estrutura completamente diferentes e reagem da mesma forma.
Por exemplo, ao se cozinhar a madeira, as fibras hidratam, mas não dissolvem. Quando se cozinha o bagaço, ele vira literalmente um mingau abrasivo, extremamente difícil de desaguar, transportar ou explodir. Portanto, as soluções iniciais não funcionaram e os altos investimentos, necessários para as correções, desestimularam novos entrantes.
Eles ficaram agora aguardando os pioneiros e o sinal de fumaça, de que os problemas teriam sido ultrapassados, é exatamente esse que a Raízen agora nos apresenta: o anúncio de uma segunda planta.
O que posso dizer é que os grandes gargalos foram ultrapassados, tanto pela Raízen como pela Granbio, e agora o setor entra em uma nova fase. Uma nova usina começa a operar na Europa e os Indianos têm anunciado a construção de diversas novas unidades. O futuro parece extremamente promissor.
Delcy Mac Cruz