Mercado

Crise de alimentos é de demanda, diz a Unica

Diante de uma crise mundial de alimentos, o setor de biocombustíveis está sendo duramente acusado de grande causador desse aumento de preços e também da falta de grãos. Para o diretor executivo da União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica), Eduardo Leão de Souza, essas acusações são infundadas, uma vez que do 1,4 bilhão de hectares usados para a produção de cereais, oleaginosas, frutas e vegetais no mundo, segundo dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação (FAO), apenas 1% é destinado à produção de etanol. E explica que a alta demanda por grãos seria a causadora da crise alimentar.

Além disso, Souza nos dá um panorama de como estão as pesquisas para aumentar a produtividade da cana-de-açúcar, o etanol de celulose e das parcerias feitas com vários países para o desenvolvimento do etanol como commodity.

Acompanhe trechos da entrevista do executivo ao programa Panorama do Brasil, a ser exibido hoje pela TVB, em parceria com o jornal DCI e a rádio Nova Brasil FM. A entrevista conta com a participação de Roberto Müller, Ana Paula Quintela, do DCI e Milton Paes, da rádio Nova Brasil.

Roberto Müller: O mundo diz que os produtores de agroenergia são os culpados pela falta de alimentos. Isso me parece uma orquestração internacional. É isso mesmo?

Eduardo Leão de Souza: É exatamente como nós temos visto todo esse debate. Percebemos que há uma politização. É um jogo de interesses muito forte que se traduz na forma de ataques constantes que nós temos vivenciado ao setor de biocombustíveis, ao setor de etanol. Há dois ou três anos, percebeu-se, o mundo percebeu, que nós tínhamos uma alternativa extremamente interessante, não só para questões relacionadas à segurança energética dos países, pois se passaria a ter um produto que pode ser produzido por mais de 100 países no mundo para abastecer cerca de 200, ao invés de ter 20, como atualmente, e, na maior parte das vezes, países politicamente complicados.

RM: Você está falando dos produtores de petróleo?

ELS: Sim, dos produtores de petróleo. Poderia haver 100 países, principalmente emergentes, produzindo biocombustíveis e abastecendo os países desenvolvidos, diminuindo a dependência e aumentando a segurança energética dos países e do mundo. Mas, mais importante do que isso, é um produto que pode contribuir de maneira significativa para as questões do aquecimento global. Por exemplo: no caso do etanol de cana-de-açúcar, é possível reduzir em 80% as emissões de CO2, os chamados gases de efeito estufa, quando comparados com a gasolina. Isso traria uma contribuição significativa para as questões relacionadas ao aquecimento global.

RM: O que se está dizendo agora é que vocês estão plantando cana no País inteiro e vai faltar alimento, e por isso os preços começaram a subir. Isso também faz parte dessa orquestração?

ELS: Na medida em que se percebeu que havia um produto extremamente interessante e que iria substituir, de uma certa forma, os combustíveis fósseis em grande medida, isso começou a despertar interesses importantes. E a reação para isso foram esses ataques que estão sendo vivenciados. Essa discussão de que o etanol está contribuindo para a alta de preços, de que o etanol está competindo com alimentos, é extremamente falaciosa. É mentira. Se nós pegarmos hoje toda a produção de alimentos no mundo, se considerarmos a produção de cereais, oleaginosas, frutas e vegetais no mundo inteiro, segundo dados da FAO, essa área plantada é da ordem de 1,4 bilhão de hectares, sem considerar as pastagens. Se nós formos procurar entender qual é a parcela dessa área que está sendo destinada a etanol, se nós pegarmos a área para a cana-de-açúcar, da qual é produzido o etanol no Brasil, toda a área de milho nos Estados Unidos que também está sendo utilizado para a produção de etanol, que é da ordem de 20%, considerarmos todo o etanol que está sendo produzido na Europa a partir de beterraba e trigo, e também na Índia, esse valor não chega a 15 milhões de hectares. Ou seja, nós estamos falando que há 1% da área total da produção de grãos que está sendo destinada à produção de etanol. Como esse 1% é capaz de impactar os preços dos alimentos que estão sendo produzidos pelos outros 99%?

Ana Paula Quintela: Na verdade, é a demanda por esses alimentos que está fazendo com que o preço suba. Somente na China, há cerca de 300 milhões de consumidores potenciais, inclusive de proteína, como a carne, que também demanda grãos para a ração. É isso o que está fazendo com que os preços fiquem elevados?

ELS: Exatamente. Este é um ponto fundamental. A Índia e a China somam um terço da população mundial, consumindo muito mais, consumindo melhor, quer dizer, há uma mudança nos padrões dos hábitos alimentares. Deixam de consumir amido, grãos e passam a consumir proteínas animais, cujo índice de conversão é muito elevado. Quer dizer, para se produzir um quilo de carne, utilizam-se cinco ou seis quilos de grãos. Há todo um aumento de demanda mundial extremamente importante e, logicamente, tem de impactar o preço dos alimentos.

RM: O ex-ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, que é quase uma unanimidade nacional, disse aqui que, ao contrário do que se diz, a plantação de cana aumenta a produção de outros alimentos. Explique para nós novamente, para nos ajudar a entender e acabar de vez com essa falácia.

ELS: Trazendo agora esse debate alimentos versus biocombustíveis, esse falso dilema, para o Brasil, o ministro Roberto Rodrigues, como sempre, está coberto de razão. Primeiro porque, se nós considerarmos a área de cana-de-açúcar que vai para a produção de etanol aqui no Brasil, ela é de apenas 1% de toda a terra arável. E com um detalhe: com este 1% estamos substituindo mais da metade de todo o consumo de gasolina no Brasil. Hoje o consumo de etanol é maior do que o consumo de gasolina. Ao aumentar a produção de etanol, como a grande maioria das nossas usinas, ao produzir etanol, também produzem açúcar, o que estamos vendo é um aumento da produção do alimento açúcar na medida em que há produção de etanol. Este aspecto é fundamental. Nós não estamos competindo. Mais do que isso, nós estamos contribuindo para o aumento da produção.

RM: Mas o Roberto Rodrigues nos disse também que plantavam em decorrência da expansão da área de cana. Ao contrário do que se dizia, que isso tomava espaço agricultável de alimentos, a produção da cana acabava incrementando essa produção.

ELS: Na agricultura, é importante adotarmos práticas de manejo adequado. Então, ao se produzir cana-de-açúcar, o padrão normal é que, a cada quatro ou cinco anos, se utilize também alguma leguminosa, ou seja, se faz uma combinação de gramínea (cana), com uma leguminosa, para um manejo adequado do solo. Nas regiões onde há o predomínio da produção de cana, 20% dessas regiões recebem o plantio de leguminosas como a soja e o amendoim. Em algumas regiões tipicamente produtoras de cana, nós também temos regiões grandes produtoras de oleginosas. Eu acredito que estes são argumentos importantes nesse debate. Eu gostaria de trazer mais um ponto a essa questão. Se nós olharmos o que aconteceu no Brasil nos últimos dez anos, apesar de ter havido um aumento da produção de etanol, os grãos, os alimentos produzidos no Brasil, duplicaram. Nós saímos de 70 milhões de toneladas há dez anos, para cerca de 140 milhões, uma safra recorde de grãos no ano passado, que são alimentos.

RM: E essa história de que a cana está entrando na Amazônia, é verdade?

ELS: Essa é outra das falácias que nós temos de todo dia desmentir, principalmente junto à imprensa européia, a ONGs que vêm nos procurar para entender essa questão. Há muita desinformação. No caso da Amazônia, 90% da produção de cana está a pelo menos 2.500 quilômetros da região amazônica. Não há viabilidade econômica de se produzir naquela região. Isto é muito importante entender. A cana é uma cultura que precisa de seis meses de clima seco para que haja a concentração de sacarose, porque se não, não se produz o açúcar e o etanol, e você precisa colher a cana. Essa não é a condição climática da Amazônia. E, além disso, a cana, diferentemente de outras commodities, que se pode produzir num local e transportar por dois, três, quatro mil quilômetros até a indústria e os portos, tem de ser processada dentro de 24 a 48 horas. Com isso, a cana tem de estar em locais que tenham condições de dar essa infra-estrutura, onde a indústria possa ser instalada, e a preferência é de que se esteja mais próximo também do mercado consumidor.

RM: O Brasil se notabilizou pela produção de etanol em decorrência da sua terra, favorável à cana-de-açúcar, mas sobretudo em decorrência de esforços para aprimorar a tecnologia de produção de etanol e de açúcar. A ponto de se tornar, com todos esses fatores, altamente competitivo e produzir com custos significativamente menores do que os americanos fazem com milho. Esse avanço na pesquisa tecnológica parou?

ELS: O aspecto interessante é o seguinte: a cana-de-açúcar é a cultura mais antiga do Brasil. Nós temos 500 anos de experiência, dos quais os últimos 30 tiveram um avanço fabuloso. Dificilmente se pode identificar um setor que tem tido ganhos tecnológicos tão substanciais e tão expressivos quanto os desse setor. Hoje, o usineiro deixou de ser um produtor de açúcar, como era há alguns anos. Hoje ele é produtor de energia. Ele produz não só açúcar, mas também etanol e energia. Isto é importante. Há um programa hoje em curso, de tal forma que o setor vai ter condições de oferecer até 15% de toda a demanda nacional de energia elétrica a partir de co-geração de energia, com bagaço, pellets e também, agora, com as folhas de cana, pois com o avanço da mecanização na colheita tem-se mais matéria-prima para gerar energia elétrica. Todas as usinas no Brasil são auto-suficientes em energia elétrica e cada vez mais elas são exportadoras dessa energia para a rede nacional. Mas, voltando à sua questão diretamente, nós temos tido ganhos de produtividade de 3% ao ano, nos últimos 30 anos. Isso se deu em função de pesquisas de altíssimo nível que são desenvolvidas por diversos centros, como a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Mas eu chamo a atenção especificamente ao Centro de Tecnologia da Cana-de-Açúcar, o CTC, em Piracicaba. Ele é um centro de pesquisa financiado pelo setor privado. Ele é uma espécie de Unica da pesquisa. Hoje, cada vez mais, há o desenvolvimento de parcerias que têm dinamizado de uma maneira importante o setor, mas a presença do setor privado tem sido fundamental para a manutenção desses ganhos tecnológicos, que se estendem à área de equipamentos que exportamos para o mundo inteiro.

MP: A Esalq também desenvolve pesquisas nesse segmento?

ELS: Dentro da Esalq existe o Pólo Bio, que é um centro de excelência na área de pesquisas, principalmente nas análises de emissões de carbono. Hoje, nós podemos dizer seguramente que o Brasil está extremamente bem amparado sob um arcabouço de pesquisa que deve nos levar à manutenção de ganhos expressivos de produtividade ao longo dos próximos anos. Eu chamo a atenção para um tipo de tecnologia que é nova, mas já é bastante conhecida e está em fase de aperfeiçoamento, que é a produção de etanol à base de celulose. Pode-se produzir etanol não só à base do caldo da cana, como se faz hoje, mas também a partir do bagaço. Os norte-americanos, logicamente, correram na frente para esse processo e estão investindo bilhões de dólares. No Brasil alguns centros importantes estão pesquisando essa tecnologia. Nós estamos trabalhando junto com os norte-americanos, na medida em que há um acordo de entendimento entre Brasil e Estados Unidos, que tem basicamente três linhas de atuação, sendo que uma delas é o compartilhamento de pesquisa. Há um trabalho na área de desenvolvimento de transferência tecnológica a terceiros países, que também é um aspecto muito importante se nós queremos ter o etanol como uma commodity , é importante que outros países também possam produzir de maneira competitiva. Os países consumidores vão querer que haja outros países produzindo, e o Brasil tem-se envolvido também nesse esforço de transferência tecnológica para países, por exemplo, da África, que têm condições climáticas muito semelhantes às nossas. O primeiro grupo de países-alvo nesse memorando são os da América Central e do Caribe. Há quatro ou cinco países nos quais estamos fazendo um esforço de transferência de tecnologia de forma a que eles possam se utilizar dessa janela de oportunidades para a produção não só de etanol, mas também de energia elétrica. Os países compradores do combustível querem ter garantias de que haverá fornecimento contínuo do produto. O Brasil teria condições de suprir a maior parte desse combustível. Mas eles vão querer também ter outras opções, pois se houver uma quebra de safra em determinada região do Brasil, haverá outros fornecedores para suprir a demanda.

RM: Eu tenho ouvido, com preocupação, que as condições de trabalho em algumas usinas são precárias e chega-se até mesmo a denunciar a existência de trabalho escravo. O que há de verdade nisso, e o que está sendo feito para melhorar essa situação?

ELS: Como em qualquer setor existem problemas, mas é importante destacar que eles são extremamente isolados. E isso gera uma generalização preocupante. Uma simples autuação que ocorra numa fazenda não significa que haja realmente um problema lá. Pode ser uma interpretação de um fiscal que gera um processo administrativo. Já há uma culpabilidade desses produtores, antes que eles tenham o direito de se defender e que seja realmente verificado se houve problema ou não. O segundo aspecto é que o setor é, no agronegócio, o que tem o maior nível de responsabilidade social para com os seus trabalhadores. No Estado de São Paulo, por exemplo, o nível de carteiras registradas é alto, se você comparar com outros setores: ele chega a mais de 90%. A questão relacionada à terceirização, de pessoas que levam o trabalhador ao campo, isso também está sendo extinto. Para que nós possamos dar maior transparência e melhorar as nossas práticas, temos feito uma série de protocolos que induzem o setor a ter incentivos para essas práticas. Temos como exemplo o protocolo agroambiental que reduz a queimada da cana em até 100% até 2014.

Banner Revistas Mobile