Por José Goldemberg – Presidente da Fapesp
O programa do álcool foi iniciado em novembro de 1975 pelo governo Geisel como uma solução brasileira e original para a crise energética de 1973, em que o custo do petróleo importado sofreu um enorme aumento de preço, agravando o balanço das contas externas do país. Além disso, ajudou a indústria açucareira local, que estava atravessando sérias dificuldades.
Etanol produzido a partir da cana de açúcar é um excelente combustível e substituiu bem uma fração da gasolina usada nos motores existentes na época, possibilidade que já era bem conhecida desde o início do século XX.
Sucede que em 1976, produzir um litro de etanol custava cerca de três vezes mais do que o custo de um litro de gasolina a preços internacionais.
O governo aumentou o preço da gasolina e indexou o preço do álcool a ele. A retórica nacionalista do governo fez com que isto fosse aceito pela população. Ao longo de três décadas, até 2005, o total destes subsídios foi de cerca de US$ 30 bilhões.
Esta era uma situação que não poderia persistir para sempre. No exterior, e mesmo no Brasil, economistas apontaram claramente os aspectos negativos do programa que exigia subsídios para sobreviver.
O que salvou o projeto nestas circunstâncias foi o fato de que a sua expansão levou à redução de custos de produção, graças aos avanços tecnológicos, como ocorre com frequência em processos similares em muitas outras áreas da economia.
No período inicial do programa, de grande expansão, o custo de produção do etanol caiu cerca de 70% a cada vez que a produção acumulada dobrou.
Em 2004, o custo da produção de etanol já era inferior ao da gasolina, o que tornou o programa economicamente saudável. A necessidade de elevados subsídios na sua fase inicial foi uma das razões por que outros países, mesmo sendo grandes produtores de cana de açúcar, como a Índia e África do Sul, não tentaram repetir o sucesso brasileiro.
Os Estados Unidos, contudo, decidiram fazê-lo por volta do ano 2000, usando milho como matéria prima, já que a cana de açúcar não cresce bem naquele país, devido às vantagens ambientais, estabelecidas pelo programa brasileiro já no início do programa.
O autoritarismo nacionalista do governo militar com o programa levou ao desenvolvimento de motores que usassem etanol puro e não misturado à gasolina. Os motores existentes na época só permitiam misturar até 20-25% de álcool na gasolina.
Motores de álcool puro foram desenvolvidos em centro tecnológico, o que se constituiu num sucesso. Mas quando o custo do petróleo caiu na década de 1990 e ocorreu falta de álcool para atender à demanda de uma frota crescente de automóveis usando álcool puro, o programa enfrentou uma fase crítica e correu o risco de ser abandonado.
Esta crise só foi resolvida em 2005, quando o governo do Estado de São Paulo estimulou o uso de motores “flex-fuel”, que permitiam o uso de uma mistura de etanol e gasolina em qualquer proporção, variando de zero a 100% de (etanol puro ou gasolina pura).
Este avanço tecnológico “salvou” o programa, permitindo que uma frota de dezenas de milhões de automóveis agora circule pelo Brasil consumindo quase 30 bilhões de litros de etanol (e cerca de 60 bilhões de litros de gasolina).
O uso de motores “flex-fuel” fez com que o Brasil deixasse de ser o “único” país a usar etanol, quer em misturas ou puro. Outros países misturam apenas de 10 a 15% de etanol na gasolina.
Países da Europa e a China seriam excelentes candidatos para o uso de etanol de cana de açúcar nos seus automóveis devido às suas preocupações com as emissões de gases resultantes do uso de gasolina, que são os principais responsáveis pela poluição local e também responsáveis pelo aquecimento global.
Isto não aconteceu até agora, provavelmente por interesses comerciais locais já que na Europa o etanol é produzido a partir de beterraba ou outros produtos agrícolas, que não conseguem competir com o etanol da cana de açúcar, que seria importado do Brasil.
Esta competição comercial foi alimentada por estudos equivocados de alguns pesquisadores que argumentam que a expansão da produção de etanol em países como o Brasil ou a África acabaria por reduzir a produção de alimentos. O debate que estas análises provocaram lembra muito as discussões que ocorreram várias décadas atrás sobre a redução do uso do cigarro a que as empresas produtoras de tabaco se opuseram.
Estes e muito outros aspectos do programa do álcool no Brasil foram reunidos num livro organizado pelo professor Luis Augusto Barbosa Cortez, da Unicamp, intitulado “Proalcool 40 anos (1975-2015)” publicado pela Editora Edgard Blucher e apoiado pela Fapesp (Fundação de Amparo à pesquisa do Estado de São Paulo).
O seu lançamento foi objeto de uma discussão aprofundada sobre o assunto na própria Fapesp no mês de novembro, em que foram ressaltados os avanços tecnológicos que tornaram possível o programa apesar das dificuldades que enfrentou. O Brasil se tornou um líder mundial inconteste nesta área.
Ao longo dos anos, desde 1975, foram publicados em revistas nacionais e internacionais mais de 900 artigos sobre os desenvolvimentos científicos e tecnológicos que aumentaram a produtividade de 3.500 litros de etanol por hectare para mais de 6 mil litros por hectare.
Existem queixas e insatisfações de vários tipos com a demora da pesquisa científica e tecnológica em dar resultados e com o que alguns consideram ser sua insuficiente contribuição para resolver os problemas econômicos e sociais do país. O sucesso do programa do álcool desmente frontalmente tais percepções. Ele movimenta hoje cerca de US$ 20 bilhões por ano na economia e gera cerca de 1 milhão de empregos.
Oxalá tivéssemos mais destes sucessos no país.