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Biomassas - para sair das platitudes

Há poucos dias, Kofi Annan, que está deixando a Secretaria-Geral da ONU, advertiu: A ação na área de mudanças climáticas é particularmente urgente, dadas suas profundas implicações em praticamente todos os ângulos do bem-estar humano, desde o emprego e a saúde ao crescimento econômico e à segurança (…) Enquanto não deixarmos de tratar mudanças climáticas com uma preocupação apenas ambiental – e em lugar disso reconhecermos a natureza ampla dessa ameaça -, nossa ação será insuficiente. O risco, já disse ele, traduz-se em ameaças à sobrevivência da espécie humana

Se fosse tomada em conta, a advertência poderia tirarnos, na atual campanha eleitoral, das platitudes diárias sobre crescimento econômico, ajuste fiscal, aumento das exportações, etc, sem levar em conta os modelos de produção e consumo que vimos seguindo (insustentáveis), a inviabilidade (pela insuficiência de recursos e serviços naturais para sustentá-las) de taxas globais e locais de crescimento econômico exacerbado, os custos sociais e ambientais crescentes do que vimos fazendo.

Mesmo quando parecemos caminhar na direção correta, o pouco que se ouve é preocupante. Como é o caso dos programas de energias alternativas provenientes das biomassas – etanol (álcool) e biodiesel (dendê, soja, mamona e outros) -, capazes de reduzir emissões de gases poluentes que intensificam o efeito estufa. Fala-se que o Brasil vai inundar o mundo de álcool, que já estamos empregando 210 mil pessoas com o biodiesel. Mas não se explicitam estratégias, rumos adequados.

Na questão do biodiesel, por exemplo, artigo recente do economista e biólogo Luiz Prado, ex-secretário de Meio Ambiente do Espírito Santo e consultor do Banco Mundial, lembra que não se está tentando associar a produção a cooperativas de pequenos produtores e dotá-las de capacidade para também promover o esmagamento (para que não se tornem meros fornecedores de insumos a megaindústrias de esmagamento, que concentrem a renda). Principalmente no Nordeste, na agricultura familiar, nos assentamentos de reforma agrária. E essa é uma tarefa de que só o governo central pode cuidar – mas não está fazendo. E sem falar em que, nos rumos atuais, se corre o risco de ver a agricultura de alimentos expulsa para mais longe, cedendo suas terras aos megaempreendimentos (como já aconteceu no Estado de São Paulo).

O caso do álcool não é muito diferente. Ora se fala que 89 novas usinas já estão previstas, ora se diz que serão 130 até 2014. Mas já há quem afirme que a tecnologia na maior parte dessas usinas é superada – como o diretor-técnico da Federação Nacional de Combustíveis e Lubrificantes, Aldo Guarda (coluna de Sônia Racy, Estado, 15/3), segundo quem o plano do álcool não é sustentável; e o biocombustível só é mais barato na bomba por causa dos impostos que pesam sobre a gasolina e não o oneram. Mas o diretor da União da Indústria Agrocanavieira do Estado de São Paulo, Eduardo P. Carvalho, responde: com o preço do barril do petróleo acima de US$ 40 o álcool é competitivo.

Isso, entretanto, não pacifica o horizonte, porque muitas questões estão sobre a mesa, à espera de resposta (além da definição de uma estratégia ampla para toda a área de energia):

Vai haver acordo com os produtores para garantir o abastecimento do mercado interno (e não deixar que se repita o quadro de 1989/90, quando o desabastecimento liquidou com o mercado de carros a álcool)?

Quem arcará com o custo de manutenção dos estoques?

Pode haver, para garantir o mercado interno, restrições às exportações, como admitiu o presidente da Agência Nacional do Petróleo?

Os exportadores dispõemse a dar garantias de fornecimento e preço a países importadores, como deseja o Japão, por exemplo?

Vai-se voltar à adição de 25% de álcool anidro à gasolina, como estão pedindo os produtores (que antes pediram a redução para 20%, para exportar mais)? Nesse caso, entrarão em cogitações outras questões que não as econômicas, o que não aconteceu quando se reduziu a mistura? É indispensável ter rotas claras. Neste momento, a Federação da Agricultura do Estado de Goiás diz que boa parte das terras cultivadas com soja e outras culturas de alimentos está migrando para a cana-de-açúcar, pois o Estado já tem 15 destilarias em operação e mais 54 projetadas. E alerta para conseqüências: a) haverá redução e deslocamento (para mais longe, com reflexos nos custos) na produção de alimentos; b) vai aumentar o desemprego no campo.

Sejam quais forem os rumos, é preciso ter os pés no chão. Como adverte a revista New Scientist (23/9), para chegar a 10% do abastecimento nos transportes no mundo com biocombustíveis será preciso que 9% das terras agricultáveis sejam ocupadas por culturas adequadas (3% no Brasil). Hoje, a produção mundial de etanol supre 36,5 bilhões de litros, para 1,23 trilhões de litros de gasolina consumidos a cada ano, e 3,5 bilhões de litros de biodiesel, ante 1,08 trilhão de litros de diesel no consumo mundial. Além do mais, diz, é preciso ter cuidados com as contas, para não deixar de acrescentar, no etanol ou no biodiesel, o consumo de energia na produção e as respectivas emissões de gases (que afetam o balanço final).

Também é preciso ter cuidado para não repetir no Brasil, na área dos combustíveis, o velho caminho de fornecedores internacionais que arcam com todos os custos ambientais e sociais não-contabilizados em troca de remuneração que nos mantém há séculos na mesma posição. É preciso ter estratégias adequadas. E discuti-las com a sociedade.

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