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Pesquisas desafiam a evolução

Se a busca por um novo tipo de cana, com alto teor de biomassa, exige um trabalho de reconstrução genômica, a eventual utilização dessa biomassa para produção de etanol celulósico passa, obrigatoriamente, por um serviço de demolição molecular.

Cada célula da cana, assim como de outros vegetais, é revestida por uma malha de fibras de celulose e outros polímeros de açúcar que, juntos, funcionam como uma muralha, dando sustentação à planta e protegendo-a contra o ataque de fungos e bactérias. Para acessar os açúcares que compõem essa celulose e transformá-los em biocombustível, os cientistas terão de aprender a desmontar essa parede, molécula por molécula ou até átomo por átomo. Um trabalho nada trivial, que requer desfazer em alguns anos de pesquisa algo que a natureza levou milhões de anos para construir.

“Os tecidos vegetais evoluíram para não serem decompostos. As árvores não têm como fugir dos predadores, então elas precisam se proteger de alguma forma para evitar que fungos penetrem nas suas células e as devorem vivas”, explica Igor Polikarpov, pesquisador do Instituto de Física de São Carlos, da Universidade de São Paulo (USP). Ele é um de vários cientistas brasileiros, espalhados por várias disciplinas, empenhados em descobrir e desenvolver enzimas naturais capazes de quebrar essa muralha biológica. Sem isso, a cana-energia não servirá para nada.

Essa tecnologia, na verdade, já existe. A natureza está cheia de fungos e outros microrganismos capazes de digerir biomassa vegetal, e várias enzimas já foram isoladas deles para uso industrial. Detergentes para lavar louça, por exemplo, são cheios de enzimas que degradam os resíduos de comida em pratos e panelas. Da mesma forma, há misturas enzimáticas (chamadas coquetéis) no mercado que já podem ser usadas para produção de etanol celulósico em laboratório, mas o custo ainda é alto demais para aplicação em escala industrial e falta especificidade para o bagaço de cana, que é a principal fonte de biomassa disponível no Brasil.

“Quem planta cana somos nós e quem entende de cana somos nós. Então quem tem de desenvolver essa tecnologia somos nós”, diz o microbiólogo Gustavo Goldman, pesquisador da USP de Ribeirão Preto e do recém-construído Laboratório Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (CTBE), em Campinas. Ele é especialista em fungos do gênero Aspergillus e quer entender como esses organismos controlam geneticamente a produção de suas enzimas. “Não é por falta de gente que não fazemos etanol celulósico ainda; é porque o problema é difícil mesmo”, diz. “Precisamos de muita pesquisa. Muita pesquisa mesmo.”

O desafio é desenvolver um coquetel enzimático brasileiro, mais barato, mais eficiente e específico para demolição de bagaço de cana, que torne a produção de etanol celulósico economicamente viável em escala industrial. “Claro que há enzimas no mercado que degradam celulose, mas elas foram desenvolvidas para outras aplicações”, destaca o pesquisador Richard Ward, do Departamento de Química da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP de Ribeirão Preto. Ele trabalha com o melhoramento de enzimas que são identificadas na natureza por sua colega Maria de Lourdes Polizeli, do Departamento de Biologia, ambos associados ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) do Bioetanol.

Maria de Lourdes é outra especialista em fungos – que, por sua vez, são especialistas em digerir celulose. “Quando você vê uma madeira em decomposição, é porque tem algum microrganismo lá produzindo enzimas e se alimentando dessa madeira”, diz a pesquisadora, que guarda em sua sala uma geladeira com mais de 200 espécies de fungos, coletados de várias regiões e ambientes do Estado de São Paulo – de amostras de solo, de esterco de vaca, de cascas de árvore, folhas, fontes de águas termais, canaviais, laranjais. É a maior biblioteca de fungos do País.

O dia a dia de seu laboratório consiste em identificar, isolar e estudar a atividade de enzimas presentes nesses fungos, visando a possíveis aplicações industriais – incluindo a produção de etanol celulósico. Uma das espécies mais promissoras identificadas até agora é o Aspergillus niveus, isolado de uma manga podre que um aluno pegou do chão ali mesmo, no câmpus da universidade. Ensaios feitos no laboratório mostraram que o fungo é um ótimo produtor de enzimas degradadoras de parede celular e que ele resiste bem em temperaturas de até 50 graus Celsius – uma característica importante para eventuais aplicações industriais.

Uma vez que uma enzima promissora é identificada por Maria de Lourdes, cabe a Ward desvendar a estrutura atômica da molécula e fazer os “ajustes” necessários para que ela funcione da melhor maneira possível. O processo envolve a substituição de aminoácidos em pontos específicos da enzima, principalmente naqueles em que ela interage com as moléculas da parede celular, chamados “sítios ativos”. As enzimas funcionam como picaretas biológicas, quebrando as ligações químicas quem mantêm as moléculas da parede unidas. Os sítios ativos são a ponta da picareta.

Mas uma picareta só não basta. É preciso uma caixa inteira de ferramentas. A arquitetura da parede celular é bastante complexa e extremamente resistente, formada por um emaranhado supercompacto de fibras de celulose, hemicelulose e lignina (veja gráfico nesta página), conformado revelam pesquisas capitaneadas pelo biólogo Marcos Buckeridge, professor da USP, diretor científico do CTBE e uma das principais lideranças científicas do País no campo do etanol celulósico. Enquanto outros procuram pelas ferramentas de demolição, seu grupo se dedica à ciência básica de desvendar e entender a estrutura da parede celular – procurando, assim, por pontos fracos que permitam desmontá-la com maior eficiência. “Não adianta ter enzimas se não soubermos o que elas precisam atacar”, resume.

A celulose, na linguagem química, é um polímero polissacarídeo – uma longa corrente de moléculas de glicose grudadas umas nas outras. Ou seja, é uma cadeia de açúcares. O objetivo final é romper os elos dessa corrente, deixando as moléculas de glicose livres para serem fermentadas por leveduras, como já é feito tradicionalmente com a sacarose do caldo de cana. Só que, para isso, é preciso quebrar a parede inteira.

Para facilitar o trabalho das enzimas, a biomassa é antes submetida a um pré-tratamento químico ou físico que fragmenta a parede e “esgarça” parcialmente as fibras. Mas, ainda assim, é um osso duro de roer. Por isso os cientistas sabem que vão precisar de muitos fungos e muitas enzimas para montar a equipe de demolição ideal. “Não existe o fungo perfeito”, diz Polikarpov. “Se houvesse um único fungo superpoderoso, capaz de degradar tudo sozinho, não existiriam mais plantas, porque ele já teria acabado com todas.”

O mais provável é que o coquetel ideal para o bagaço de cana será uma mistura de diversas enzimas, isoladas de diferentes organismos. Especialista em desvendar a estrutura molecular de proteínas, Polikarpov estuda agora o funcionamento de várias delas para tentar entender como elas interagem com a biomassa.

“Para fazer uma boa sopa, você tem de conhecer o sabor de cada ingrediente; da carne, da batata, etc. No coquetel enzimático é a mesma coisa. Para montar a receita ideal, precisamos conhecer a atividade de cada enzima individualmente”, compara o cientista.

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