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O salto que falta

O pesquisador diz que o Brasil precisa aumentar o número de cientistas no setor privado. É da união dessas forças que nasce a inovação Uma marca distintiva das nações mais inovadoras do planeta é o fato de a esmagadora maioria de seus pesquisadores estar na iniciativa privada. Esse não é o caso do Brasil. Por aqui, o físico Carlos Henrique de Brito Cruz fez as contas e constatou que a universidade é o endereço de sete em cada dez cientistas. Sobram apenas três para as empresas. Alterar essa má distribuição da massa cinzenta nacional é crucial para que o país cresça de forma consistente, com base no conhecimento. “A pesquisa aumenta a capacidade de inovação, permitindo que países e empreendedores encontrem atalhos para usufruir vantagens competitivas no mercado internacional”, diz o físico. Brito Cruz, de 50 anos, é uma referência no debate sobre a alocação de neurônios, pois conhece os dois lados da moeda. Atual diretor científico da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), foi reitor da Unicamp. No outro lado do balcão, trabalhou nos Laboratórios Bell, um dos mais renomados centros privados de pesquisa mundial. A seguir, trechos da entrevista concedida a VEJA.

Veja – Todos dizem que é importante inovar. Mas, afinal, o que é inovação?

Brito Cruz – Uma empresa inova quando coloca no mercado, com êxito, produtos, serviços ou processos que não existiam anteriormente. Essa é uma inovação radical. É possível inovar também modificando alguma característica de algo que já existe. Chamamos de inovação tecnológica aquela que se baseia no conhecimento científico para sua realização.

Veja – O senhor pode citar alguns exemplos de inovação?

Brito Cruz – Exemplos clássicos de inovação tecnológica são o laser, o transistor e o computador pessoal. Eles foram realizados por empresas e mudaram a nossa vida. No Brasil, o motor bicombustível é um caso interessante. Ele foi desenvolvido quase que simultaneamente, mas de forma independente, por várias empresas automotivas. Isso porque houve estímulo oficial por meio da redução de impostos. Outra vantagem das inovações: quem chega primeiro ao mercado normalmente obtém os maiores ganhos.

Veja – Apenas 30% dos cientistas brasileiros estão em empresas. Por que isso é ruim para a inovação?

Brito Cruz – Todos os países que construíram uma agenda de desenvolvimento baseada no conhecimento têm distribuição oposta a essa. Nos Estados Unidos e no Japão, a relação é inversa: apenas 20% dos pesquisadores estão nas universidades e os outros 80%, nas empresas. Na Coréia do Sul, a iniciativa privada fica com 67%; no Canadá, na França e na Inglaterra, com 60%. Isso é invariável e quer dizer que esses países têm na indústria um lugar relevante para a criação do conhecimento.

Veja – Mas como as empresas desses países conseguiram reunir tantos neurônios na linha de produção?

Brito Cruz – Essa distribuição tem raízes históricas. Começou na segunda metade do século XIX, com o surgimento da indústria química na Alemanha. Ela estava fortemente baseada em inventores que vendiam ou licenciavam suas criações para as empresas. As companhias perceberam que seria mais eficaz ter seus próprios pesquisadores e começaram a contratá-los. Isso aconteceu com a Bayer e a Hoechst. Depois se ampliou para a Siemens, a GE, a AT&T e a DuPont. Foi a pesquisa que tornou essas empresas gigantes globais.

Veja – Agora, então, temos de atrair mais pesquisadores para a indústria?

Brito Cruz – Sim, mas sem tirar os que já estão na universidade. Eles exercem o papel importantíssimo de formar novas gerações de pesquisadores. A estratégia correta é criar oportunidades para que parte dos formados a cada ano possa trabalhar como cientista em empresas. E temos de fazer isso com rapidez.

Veja – Formamos 10.000 doutores por ano. Isso é pouco?

Brito Cruz – Não. É um número competitivo. É similar ao da Inglaterra, da Índia e da Coréia do Sul. Nesse caso, a fragilidade brasileira não está no número, mas no perfil. Formamos poucos doutores em engenharia e ciências naturais, áreas importantes para o incremento da inovação.

Veja – Por que chegamos a esse placar tão dilatado de 7 a 3 para a universidade contra a indústria?

Brito Cruz – Nenhuma empresa contrata pesquisadores e investe em pesquisa à toa. Até os anos 90, a economia brasileira era muito fechada. As indústrias estavam pouco expostas à competição internacional. E esse é um fator desestimulante para a pesquisa. Sem concorrência, ninguém precisa avançar. A Coréia do Sul foi movida por princípio oposto. Considerou o mundo como um mercado a ser conquistado e se abriu. Hoje, tem empresas entre as mais inovadoras do planeta. No Brasil, tivemos ainda uma inflação estratosférica, que também inibiu os investimentos em produção e pesquisa.

Veja – Sob o ponto de vista da inovação, o que prejudica o ambiente empresarial no Brasil?

Brito Cruz – Problemas como a abertura e a instabilidade já foram relativamente contornados. Mas juros e principalmente a limitada confiança que as empresas podem ter nas regras são barreiras importantes. Os empresários precisam de mais segurança para aplicar recursos em pesquisa porque a maturação desse investimento é de longo prazo. Como fazer uma aposta pensando longe com regras que mudam a todo momento?

Veja – Muitos acadêmicos odeiam o lucro, ainda têm ojeriza ao capitalismo e detestam o mercado. Esse tipo de postura também é um obstáculo à pesquisa privada?

Brito Cruz – Nos últimos vinte anos, houve uma mudança de atitude fortíssima nas universidades. Elas perceberam que interagir com a empresa pode ser bom. Mas o fato é que a academia tem a função de educar e avançar o conhecimento. Mais do que as universidades, as empresas conhecem as demandas do mercado.

Veja – Mas esse tipo de postura criou a idéia de que o grande cientista está na academia. Nas indústrias, os pesquisadores apertam parafusos.

Brito Cruz – O que é uma idéia totalmente equivocada. A liberdade acadêmica é valiosa, mas é possível um cientista se realizar plenamente num laboratório industrial. Vários prêmios Nobel foram dados a pesquisadores do setor privado. Muitos laboratórios industriais se dedicam a criar um ambiente intelectual cativante, igual ao das melhores universidades, o que é fundamental para a pesquisa. Temos exemplos interessantes na Microsoft Research e nos Google Labs.

Veja – Como incentivar a inovação no Brasil e atrair mais cérebros para a indústria?

Brito Cruz – Primeiro, as empresas brasileiras têm de ver o mundo como um mercado. Têm de se abrir. A exposição no comércio internacional, um ambiente competitivo em que vencem as melhores idéias, é fundamental para a inovação. Por outro lado, o Estado deve realizar um conjunto de ações para estimular as empresas. Isso se faz reduzindo o risco intrínseco da atividade de pesquisa.

Veja – Como se reduz esse risco?

Brito Cruz – Em várias frentes. É preciso oferecer um bom sistema universitário, capaz de formar bons profissionais. Isso a empresa não vai fazer. Outro ponto é assegurar a propriedade industrial. O Brasil, nesse campo, tem muito chão a percorrer. O caminho começa pelo registro de patentes, que é lento e problemático. Foi impressionante o fato de o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi), no qual são registradas as patentes, não ter tido um presidente durante o primeiro ano e meio do governo Lula. Teve apenas um interino. Ninguém vai investir em pesquisa sem ter a certeza de que a legislação e o sistema jurídico vão lhe garantir o benefício de ter sido o primeiro a criar alguma coisa.

Veja – Quais as outras frentes?

Brito Cruz – É preciso que haja estímulo do governo à pesquisa. O país tem de achar um jeito de fazer isso sem perder a eficiência e o clima de competitividade. Outras nações acharam. A subvenção é fortemente utilizada nos Estados Unidos e na Europa. É feita, por exemplo, por meio de compras públicas. O termo correto é encomendas tecnológicas. É isso o que acontece no programa espacial americano. Esse tipo de projeto, além de mandar para o espaço um foguete, tem o mérito de desenvolver a tecnologia da indústria local. As empresas aprendem a fazer coisas que, posteriormente, serão usadas por aqui. Foi assim que surgiram dezenas de inovações, como o sistema de GPS (Global Positioning System).

Veja – Não é difícil para um país como o Brasil fazer esse tipo de encomenda?

Brito Cruz – O Brasil já fez algo parecido com a Embraer. A Força Aérea encomendava aviões não só para aumentar a sua frota, mas para criar um fabricante de aeronaves. O Proálcool também incentivou a pesquisa. Por mais polêmicas que iniciativas desse tipo tenham sido, precisamos encontrar uma maneira razoável de realizá-las hoje de forma que o consumidor seja beneficiado.

Veja – O tema inovação já é parte importante da agenda do país?

Brito Cruz – Começou a entrar na agenda oficial em 1999. Antes disso, o Ministério da Ciência e Tecnologia considerava a pesquisa um patrimônio da universidade. Isso começou a mudar. O governo Lula, felizmente, não jogou fora o que vinha sendo feito na administração anterior. Hoje, a política para inovação começa a ser maior do que os governos. Passa a ser de Estado. O nosso atual problema é que a velocidade ainda é muito baixa. Temos de acelerar esse processo.

Veja – Intervenções ideológicas como a realizada pelo PT na Embrapa também atrasam o país nessa tentativa de inovar?

Brito Cruz – Certamente. O que aconteceu na Embrapa foi muito ruim. Houve uma tentativa de sindicalizar a instituição. Isso foi um erro brutal. Tudo com base num antagonismo ideológico existente no atual governo contra a palavra agronegócio. Esse antagonismo ainda existe, mas parece que, em função da necessidade de resultados que beneficiem o contribuinte, uma parte do governo parou de falar mal do agronegócio. Percebeu que é ele que exporta, produz, gera emprego, comida mais barata. O pior é que o problema na Embrapa não acabou. A instituição ainda sofre com um orçamento limitado. Isso desarticulou um sistema vital para o país. A pesquisa agropecuária no Brasil depende muito de organizações estaduais articuladas pela Embrapa. Mas a entidade perdeu sua capacidade de articulação.

Veja – O Brasil já perdeu o trem da evolução tecnológica em áreas como a microeletrônica. Qual é o trem que estamos perdendo desta vez?

Brito Cruz – Na verdade, como as mudanças são muito rápidas e existem atalhos, esses trens podem passar de novo. Por isso a pesquisa nas empresas é importante. Mas existe uma locomotiva imensa, escancarada na nossa frente: a geração de energia por meio de fontes renováveis. No caso específico do Brasil, a produção de etanol. É um fato incomum na vida brasileira o país ocupar a liderança numa atividade científica e tecnológica. E, hoje, somos líderes nesse campo. Isso é tão raro que estamos enfrentando dificuldade para tratar desse assunto.

Veja – Que cuidados o país tem de tomar?

Brito Cruz – Nossa vantagem no etanol não foi construída só pela sorte ou pelo clima. Somos líderes nesse ramo porque conseguimos criar uma tecnologia inovadora. Mas precisamos intensificar a pesquisa, senão seremos superados. O mundo, premido pela escassez de petróleo, já presta muita atenção no Brasil. Os outros países estão em busca de alternativas. E vão encontrá-las.

Veja – Os americanos já testam transgênicos para produzir etanol a partir da celulose. Esse produto pode rivalizar com o álcool brasileiro?

Brito Cruz – Os americanos vêm investindo nessa rota, e já aprenderam muito. Têm empresas com plantas-piloto de etanol da celulose, mas ainda não conseguiram resultados economicamente competitivos. Mas conseguirão. É por isso que o Brasil deve caminhar rapidamente.

Veja – Em que direção o Brasil deve seguir?

Brito Cruz – Várias. Em pesquisa, temos de fazer várias apostas simultâneas, pois não sabemos previamente onde elas vão dar. Mas a tecnologia sempre foi usada para melhorar a cana para a produção do açúcar. Agora, podemos fazer o mesmo, pensando na produção de álcool. O uso de transgênicos pode ser importante nessa frente de pesquisa. A cana é uma planta especial na natureza, e podemos aproveitá-la de forma ainda mais eficiente. Ela facilmente gera mais energia do que consome para produzi-la. O milho não tem essa capacidade. Ele consome mais energia fóssil do que consegue gerar de etanol.

Veja – O Brasil investe pouco em pesquisa e desenvolvimento?

Brito Cruz – As verbas caíram um pouco nos últimos anos. Em 2001, aplicávamos 1,1% do produto interno bruto. Agora, estamos em 0,9% do PIB. É pouco, comparado ao aplicado pelos países desenvolvidos ou pelos principais emergentes, que investem mais de 2,2%. Além disso, temos um problema de alocação. No Brasil, de cada 10 reais investidos em pesquisa e desenvolvimento, 7 vêm do governo e apenas 3, da iniciativa privada. É o mesmo problema verificado na distribuição dos pesquisadores.

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