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O migrante e os usineiros

EM ARTIGO anterior (“Tendências/Debates” de 3/1), indicamos o pragmatismo, a conciliação e o messianismo como elementos fortes da fenomenologia do lulismo.

Quais seriam os traços ontológicos constitutivos desse fenômeno?

Lula é a expressão pública mais bem-sucedida do “self made man” político do Brasil recente: migrante do Nordeste brasileiro, labutou no ABC como torneiro mecânico e se tornou a principal liderança do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo.

Sua viva espontaneidade e real representação dos metalúrgicos, sua ação sindical corajosa e recusa à política tradicional foram responsáveis diretos por esse significativo salto.

Desde a segunda metade dos anos 1970, liderou as históricas greves do ABC, participou da fundação do PT e da CUT (Central Única dos Trabalhadores), foi cassado da presidência do sindicato pela ditadura militar.

Durante a década de 1980, esteve presente em praticamente todas as lutas sociais e políticas importantes: nas incontáveis greves, nos embates eleitorais, na constituinte, até as memoráveis eleições de 1989, em que sofreu um embuste eleitoral profundo.

De metalúrgico, tornou-se representante, o mais vigoroso, das forças sociais do trabalho. Do ABC para São Paulo e daí para o conjunto do país.

Sua extração social era límpida: migrante de origem e metalúrgico de alma, teve nessa fase muito mais acertos do que erros -quando se procura fazer uma retrospectiva histórica sóbria, nem “ex post” nem apologética.

Lula era uma expressão típica dos “peões” do ABC, como os metalúrgicos se autodenominavam.

Mas a década seguinte, a dos anos 1990, trouxe mutações profundas, inicialmente com Fernando Collor de Mello e depois com Fernando Henrique Cardoso. O país estancou, os assalariados se informalizaram e o desemprego estrutural explodiu. O país se desertificou.

O PT e a CUT sofreram na carne esse processo. E Lula, o ex-metalúrgico, pouco a pouco se distanciava de sua categoria (e classe) de origem, assumindo um “modus vivendi” mais próximo das classes médias, como transparece no depoimento que deu a João Moreira Salles em “Entreatos”.

Seu crescente papel de “tertius” dentro do PT, com um séqüito de lulistas sempre dando suporte, ampliava sua tendência que oscilava entre a liderança e o mandonismo, ainda que nublada pela (aparência de) simplicidade em suas ações.

Como seus seguidores fiéis jamais faziam nenhum reparo, Lula, acentuando seu traço bonapartista, consolidava a imagem de um farol sempre iluminado que mostrou sua plenitude no poder, depois das eleições de 2002.

Distanciado de sua origem operária, submerso no novo ethos de classe média, galgando degraus ainda mais altos na escala social, tudo isso foi convertendo Lula em uma variante de homem duplicado que passou a admirar cada vez mais os exemplos daqueles que vêm “de baixo” e vencem dentro da ordem. Daí sua admiração por personagens como Zezé di Camargo e Luciano, para ficar nesses exemplos.

Sua nova forma de ser gerou uma consciência invertida de seu passado e um deslumbramento em relação ao presente.

Preservada a empatia “direta” com as massas, tendo se moldado celeremente pelo convívio com freqüentadores dos palácios, o lulismo, com seus dotes arbitrais -num momento em que as frações dominantes não puderam garantir em 2002 a sucessão presidencial-, se tornou expressão de um governo que fala para os pobres, vivencia as benesses do poder e garante mesmo a boa vida aos grandes capitais.

Uma espécie de semibonapartismo, recatado frente à hegemonia financeira e hábil no manuseio de sua base social, que vem migrando dos trabalhadores organizados para os estratos mais penalizados que recebem o Bolsa Família. E para o qual o PT se tornou dispensável.

O que nos recorda o personagem Felix Krul, de Thomas Mann, que, após experimentar uma vida dúplice, confessou: “Percebi que a troca de existências não produziu apenas uma deliciosa renovação mas também certa obliteração no meu interior -no sentido de que todas as recordações de minha vida anterior haviam sido exiladas de minha alma”.

O que ajuda a entender, então, por que Lula agora é só elogios para os usineiros.

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