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O fracasso da rodada de desenvolvimento

Parecem liquidadas as esperanças de um bom desfecho da rodada de desenvolvimento do comércio mundial, que abriria oportunidades para os países em desenvolvimento crescerem a reduzirem a pobreza. Embora se vejam lágrimas de crocodilo por toda parte, o desapontamento não foi tão grande assim: Pascal Lamy, o chefe da Organização Mundial de Comércio, há muito estava cuidando de baixar as expectativas, de tal forma que já estava claro que os benefícios aos países pobres, se houvesse, seriam limitados.

O fracasso não é surpresa: os Estados Unidos e a União Européia há muito renegaram as promessas feitas em 2001, em Doha, de corrigir os desequilíbrios da última rodada de negociações comerciais — uma rodada tão injusta que os países mais pobres ficaram em situação ainda pior. Mais uma vez, a falta de compromisso dos EUA com o multilateralismo, sua teimosia e sua disposição de pôr expedientes políticos acima dos princípios — e mesmo de seus próprios interesses nacionais — triunfou. Com eleições previstas para novembro, o presidente George W. Bush não podia “sacrificar” os 25 mil ricos produtores de algodão ou os dez mil prósperos produtores de arroz e suas contribuições de campanha. Poucas vezes tantos tiveram que perder tanto para proteger os interesses de tão poucos.

As conversas deram em nada na agricultura, onde subsídios e restrições comerciais continuam tão ou mais altos do que na indústria. Os cerca de 70% das pessoas em países em desenvolvimento que dependem direta ou indiretamente da agricultura são os perdedores no regime atual. Mas o foco sobre a agricultura desviou a atenção de uma agenda muito mais ampla que poderia ter sido encaminhada de forma benéfica para o Norte e para o Sul.

Por exemplo, as tarifas muito maiores sobre bens processados significam um desestímulo aos países em desenvolvimento a se voltar para atividades de agregação de valor que criam empregos e aumentam a renda. O exemplo talvez mais chocante é a tarifa dos EUA de US$0,54 sobre a importação de etanol, sem que haja tarifa sobre o petróleo e apenas US$0,50 por galão sobre a gasolina. Isso contrasta com o subsídio de US$0,51 por galão de etanol concedido às firmas americanas (e em grande parte recebido por uma só). Assim, os produtores estrangeiros não podem competir a menos que seus custos sejam US$1,05 mais baixos, por galão, que os dos produtores americanos.

Os grandes subsídios fizeram dos EUA o maior produtor de etanol do mundo. Porém, mesmo com essa grande vantagem, algumas empresas estrangeiras ainda podem entrar no mercado americano. O etanol brasileiro, do açúcar, é produzido a custo muito mais baixo que o americano, à base do milho. As firmas brasileiras são muito mais eficientes do que a indústria americana subsidiada, que se esforça mais por ganhar subsídios do Congresso do que em aumentar sua eficiência. Alguns estudos sugerem que nos EUA custa mais energia produzir o etanol do que a energia que ele fornece. Se os EUA derrubassem essas barreiras injustas, comprariam mais energia do Brasil e menos do Oriente Médio. Mas o governo Bush prefere ajudar os produtores de petróleo do Oriente Médio, cujos interesses divergem tanto mais dos interesses americanos que os do Brasil. É claro que o governo não diz isso; com uma política de energia criada pelas companhias de petróleo, a Archer Daniels Midland e outros produtores de etanol apenas tiram proveito de um sistema corrupto de contribuições eleitorais em troca de subsídios.

Nas negociações, os EUA disseram que só cortariam subsídios se os outros em troca abrissem seus mercados. Mas, como disse o ministro de um país em desenvolvimento, “nossos agricultores podem competir com os americanos; mas não podemos competir com o Tesouro americano”. As nações em desenvolvimento não podem e não devem abrir integralmente seus mercados aos produtos agrícolas dos EUA, a menos que os subsídios americanos sejam completamente eliminados. Caso contrário, teriam de subsidiar seus agricultores, desviando recursos escassos necessários para educação, saúde, e infra-estrutura.

Em outras áreas, foi reconhecido o princípio da reciprocidade: quando um país cria um subsídio, outros podem criar uma tarifa para contrabalançar a vantagem indevida. Se os mercados são abertos, os países devem ter esse direito de compensar subsídios americanos e europeus. Isto seria um grande passo à frente para a criação de um regime justo de comércio, que promova o desenvolvimento.

No início da rodada, a maioria dos países em desenvolvimento temia não só que a UE e os EUA recuassem de suas promessas (o que de fato ocorreu, em grande medida), mas também que o acordo final mais uma vez lhes seria desfavorável. Em resultado, boa parte do mundo em desenvolvimento está aliviado por ter sido evitado pelo menos este risco. No entanto, havia um segundo risco: que o mundo achasse que o acordo tinha alcançado os objetivos da rodada expostos em Doha, passando os negociadores mais uma vez a tornar a rodada seguinte tão injusta quanto as anteriores. Isso também parece ter sido evitado.

Resta uma preocupação: os EUA correram a assinar uma série de acordos bilaterais que são ainda mais unilaterais e injustos com os países em desenvolvimento, e que podem induzir a Europa a fazer o mesmo. Esta estratégia de dividir e conquistar prejudica o sistema de comércio multilateral, que se baseia no princípio da não-discriminação. Países que assinam acordos assim recebem tratamento preferencial. Mas os países em desenvolvimento têm pouco a ganhar e muito a perder com esses acordos, que quase nunca produzem os benefícios prometidos.

Na verdade, todo o mundo perde com o enfraquecimento do sistema multilateral. O resto do mundo não deve aceitar a abordagem unilateral dos EUA: o sistema multilateral é precioso demais para ser destruído por um presidente americano que repetidamente mostrou seu desprezo pela democracia global e pelo multilateralismo.

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