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O fim do começo

O petróleo é hoje uma das principais incógnitas no caminho do crescimento global. Há especialistas que o vêem como uma pedra descomunal, cujo preço, que já bateu na casa dos 70 dólares o barril, dificilmente cairá de forma significativa. Colin J. Campbell é um expoente desse grupo de analistas. Ph.D. da Universidade de Oxford, o técnico trabalhou como geólogo em grandes companhias do ramo por mais de quatro décadas. Atualmente, ele dirige a Association for the Study of Peak Oil & Gas, entidade presente em catorze países, especializada em monitorar a produção e o mercado mundial de energia de origem fóssil. Desde que o primeiro barril de petróleo foi extraído do chão com o objetivo de mover um automóvel, especula-se sobre o fim desse combustível. Ninguém ainda tem uma resposta sobre quando ele vai acabar. Campbell tem pelo menos uma estimativa racional fundamentada na melhor base de dados possível sobre a indústria petrolífera. Nesta entrevista a VEJA, Campbell diz que a curva de produção na maioria das regiões produtoras atingiu seu auge e daqui para a frente ela só aponta em uma direção: para baixo. Ao mesmo tempo, os preços apontam para cima.

Veja – Em 1997, o senhor escreveu o livro A Crise do Petróleo Está Chegando. Agora, acaba de republicá-lo, mas com um novo título: A Crise do Petróleo. A situação agravou-se tanto em apenas oito anos?

Campbell – Sim. A crise já chegou. Depois de oito anos, achei que seria bom reescrever o livro acrescentando novos dados. Todavia, percebi que seria estúpido manter o título original.

Veja – Mas já houve outras crises. Em que aspecto a atual turbulência se diferencia das anteriores?

Campbell – A base do problema mudou. Hoje, o conflito no Iraque tem pressionado o preço do petróleo, mas o trágico é que a produção atingiu o limite imposto pela natureza. Essa é a diferença. Nas demais crises, o preço do barril explodia, mas embalado por conflitos que limitavam a produção e a oferta. O choque da década de 70, por exemplo, foi influenciado pelo confronto árabe-israelense em 1973 e pela queda do xá do Irã, em 1979. Não havia restrições naturais, mas, sim, políticas. Agora a situação é inteiramente diferente.

Veja – Com o desenvolvimento tecnológico, o mundo não pode encontrar mais fontes de petróleo e manter a produção estável?

Campbell – É fato que houve um brutal avanço das técnicas de prospecção e perfuração, além do conhecimento geológico. Mesmo assim, nos últimos quarenta anos, caiu o número de descobertas de novas reservas de petróleo. A realidade é que há poucos lugares no mundo com petróleo, e quase todos já foram localizados.

Veja – O senhor diz que, em alguns casos, o avanço tecnológico pode até acelerar o fim do petróleo. Por quê?

Campbell – O principal impacto da tecnologia tem sido, na verdade, manter altos níveis de produção em reservas conhecidas. Mas essa produtividade elevada, ironicamente, antecipa o fim do petróleo ao esgotar mais rapidamente essas fontes. Ou seja, a tecnologia acelera a retirada e não aumenta o número de descobertas realmente ponderáveis. É por isso que digo que ela antecipa a crise.

Veja – É possível controlar o pico de produção do petróleo?

Campbell – Não. A taxa de produção de um campo de petróleo é determinada por sua reserva física. Claro, é sempre possível expandir um pouco, mas isso pode danificar a reserva. Então, a produção é basicamente determinada pela natureza. Não tem nada a ver com investimento nem com tecnologia. É forçada pela pressão da reserva. Quando esta diminui, a produção cai também. É muito simples.

Veja – Existe relação entre a atual onda de fusões no setor petrolífero e a crise do petróleo?

Campbell – Sem dúvida. As fusões são conseqüência da crise. Como hoje é mais difícil anunciar novas descobertas com freqüência, as companhias resolveram juntar forças e o volume de suas reservas. A Exxon comprou a Mobil. A Chevron comprou a Texaco. A BP comprou a Amoco e a Arco. A Shell, que não realizou o mesmo movimento, foi forçada a admitir que suas reservas eram 20% menores que as anunciadas aos investidores. Foi um grande escândalo que culminou na saída de seu presidente.

Veja – Por que as companhias petrolíferas dizem que continuarão suprindo a demanda global pelo menos pelos próximos quarenta anos?

Campbell – Isso é matematicamente correto. Mas é absurdo supor que a produção se manterá constante pelos próximos quarenta anos e, de repente, acabará. Na verdade, ela vai declinar gradualmente. Assim, ainda que a matemática esteja correta, é extremamente enganoso colocar as coisas dessa forma, pois dá a impressão de que está tudo bem e que só devemos nos preocupar com isso daqui a quarenta anos. Claramente, isso é uma bobagem.

Veja – O senhor também utiliza dados sobre as reservas mundiais bastante diferentes das estatísticas publicadas pelas empresas produtoras de petróleo. Qual a razão dessa divergência?

Campbell – As companhias divulgam que o total de reservas de petróleo no mundo soma 1,15 trilhão de barris. Eu calculo que não passam de 780 bilhões de barris. A diferença ocorre porque as empresas consideram todo tipo de reserva, seja em águas profundas, seja nos pólos, onde seria preciso perfurar quilômetros de calota gelada para extrair o produto. Além disso, a indústria soma indiferenciadamente o petróleo, do melhor ao imprestável. As empresas desconsideram também o fato de que os países do Oriente Médio há anos superestimam suas reservas. Meu cálculo é mais seletivo e, acredito, mais preciso.

Veja – Por que um país qualquer superestimaria suas reservas?

Campbell – O objetivo imediato é poder aumentar a cota de produção anual de cada um. Segundo as regras da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), o limite anual de produção de um país é proporcional ao tamanho de sua reserva. Logo, quanto maior a reserva, maior poderá ser a produção anual. Essa prática irregular começou com o Kuwait, que, entre 1980 e 1984, anunciou ter reservas de 63 bilhões a 65 bilhões de barris. Em 1985, sem que novas descobertas tivessem sido feitas, as estimativas oficiais saltaram para 90 bilhões de barris. O disparate foi tamanho que abriu caminho para que outras nações produtoras fizessem a mesma coisa. Os Emirados Árabes inchavam artificialmente suas reservas de 31 bilhões para 92 bilhões. A Arábia Saudita passou a divulgar reservas de 257 bilhões de barris, contra os 117 bilhões que tinha antes. A Venezuela subiu seus números de 25 bilhões para 66 bilhões. Quando faço minhas estimativas, desconto do total essa manobra que inflou artificialmente as reservas.

Veja – Que papel a Opep pode ter na administração do preço do petróleo?

Campbell – A entidade não tem mais nenhuma atuação nem mecanismo de restrição que possam ter alguma relevância. Sua finalidade primordial agora é cortar a produção para manter o preço alto. Nunca se praticou efetivamente a manobra contrária, ou seja, aumentar a produção para cortar os preços. A partir de agora, os preços só podem subir até que a demanda seja reduzida pela recessão ou por alguma forma de racionamento. Não dá para dizer se os preços vão atingir seu mais alto valor histórico, mas isso é possível. O mais certo é que não estamos vivendo uma situação passageira, como nas altas de preço do passado recente. Diria que estamos no início de um ciclo cujo fim é o colapso da produção de petróleo.

Veja – Qual será o impacto desse colapso para a economia?

Campbell – Estamos vivendo o fim da primeira metade da era do petróleo. Ela durou 150 anos e permitiu uma rápida expansão da indústria, dos transportes, do comércio e da agricultura. A população mundial aumentou seis vezes, enquanto a produção do petróleo também crescia. Agora, ela está chegando ao pico e declinará de maneira irreversível. Começa, então, a segunda metade da era do petróleo, que acarretará o declínio de tudo o que depende do ouro negro. Isso quer dizer que o crescimento econômico como conhecemos hoje não será mais possível. O fim da primeira era do petróleo promete ser uma reviravolta de magnitude nunca vista. O mundo nunca deparou com algo semelhante. Na escala evolutiva das técnicas humanas, a pedra deu lugar ao bronze, o bronze ao ferro, o ferro ao aço. A cada fim de ciclo, surgiu um substituto melhor que seu antecessor. O problema específico do nosso tempo é que ainda não há nenhum substituto à altura para o petróleo.

Veja – Nem mesmo o álcool combustível, o etanol, pode ser um dia substituto para o petróleo?

Campbell – Não inteiramente. A capacidade do etanol de gerar energia é menor que a do petróleo. Além disso, o etanol exige extensas áreas de cultivo. Esses fatores tornam inviável que ele substitua plenamente o petróleo. A humanidade certamente encontrará uma saída para essa crise energética, mas, até o momento, não apareceu nenhuma solução inteiramente satisfatória.

Veja – Em 1956, o geofísico americano Marion King Hubbert declarou que os Estados Unidos atingiriam o pico da produção de petróleo na década de 70. Ele estava certo?

Campbell – Hubbert estudou somente o petróleo nos Estados Unidos. Como ele trabalhava para uma companhia, sabia quanto de petróleo havia sido encontrado até então e que a descoberta de novas reservas vinha diminuindo desde 1930. Então, pegou lápis e papel e desenhou a curva de produção. Nada muito complexo. Analisando essa curva, Hubbert afirmou, em 1956, que a queda na produção americana de petróleo ocorreria por volta de 1970. Ele acertou em cheio.

Veja – O que diferencia a teoria do pico de Hubbert das demais análises atuais a respeito do petróleo?

Campbell – Na verdade, não se tratava de uma teoria. Era uma observação dos fatos. É preciso encontrar o petróleo antes de produzi-lo. Se observamos que as descobertas vêm rareando nos últimos quarenta anos, então a queda da produção não pode ser nenhuma surpresa. Foi isso que Hubbert fez. Ele viu que a taxa de descoberta de novas reservas nos Estados Unidos vinha caindo. Extrapolando seu raciocínio para o planeta todo, chegamos à conclusão de que o pico mundial está bem próximo.

Veja – O senhor se arriscaria a precisar melhor quando esse pico será atingido?

Campbell – Esse é um tema que provoca grande debate. Alguns dizem que o pico ocorreu no ano passado. Outros afirmam que chegaremos lá neste ano ou nos próximos cinco. Mas isso não é tão relevante. Esse momento não me inquieta. O que realmente preocupa é como atravessaremos o longo período de declínio que se seguirá. Calculo que a produção de petróleo vá sofrer uma queda anual de 2% a 3% a partir do pico. A isso se soma o fato de que as fontes alternativas como a energia solar, a eólica e a hidrelétrica e a biomassa não são tão baratas e ao mesmo tempo tão convenientes como o petróleo. A principal e mais imediata conseqüência disso é que o preço do barril vai subir cada vez mais.

Veja – Quanto?

Campbell – Não sei. Posso garantir apenas que o vetor do preço aponta para cima. Pelo menos até que a demanda possa ser reduzida. O problema é que ninguém quer consumir menos. Ao contrário, os chineses e os indianos, que são bilhões de pessoas, estão usando cada vez mais combustíveis fósseis.

Veja – Qual é a situação do Brasil nesse cenário?

Campbell – O Brasil é um caso especial, porque encontrou uma maneira de extrair petróleo em águas profundas. Não fossem essas reservas, o país não teria mais de 7 bilhões de barris. O auge da produção brasileira em poços tradicionais ocorreu em 1986. Incluindo as reservas em águas profundas, o Brasil atingirá o pico em 2011. A partir daí, ela cairá. Portanto, o país tem uma posição relativamente boa, mas não está livre da crise mundial de energia. Se aceitam uma sugestão, eu diria que o Brasil não deveria descuidar de seu futuro energético apenas porque a situação atual é confortável. É preciso ser rápido para evitar o pior.

Veja – Qual seria a melhor estratégia para o Brasil ?

Campbell – O consumo brasileiro aumentou muito. Saltou de 300.000 barris por dia em 1966 para 1,2 milhão de barris em 1990. Chegou a 1,8 milhão de barris diários em 2000. Desde então está estabilizado. O Brasil pode atingir a auto-suficiência neste ano e ainda terá uma sobra para exportar até por volta de 2020. Depois, voltará ao mercado mundial como comprador. Se eu fosse o governo brasileiro, estudaria a possibilidade de estocar a maior parte da produção nacional atual em vez de exportar o excedente.

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