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O canto sedutor dos petrocratas

Até recentemente classificávamos as análises e avaliações sobre o futuro da humanidade ante os problemas da energia em duas categorias, a de otimistas e a de pessimistas. Ou seja, é possível agrupar as análises em duas grandes classes, aquelas que concluem que o petróleo está na iminência de esgotamento e as que afirmam que teremos petróleo por ainda muito tempo. Todavia, após décadas de debates e relevante acúmulo de conhecimento, começamos a perceber que a divergência está mais no plano da retórica do que no da realidade.

A revista “Veja” mostra claramente esse sofisma. Diz matéria do prestigiado semanário, em sua edição de 9/6/04: “Com o atual nível de consumo, as reservas conhecidas são suficientes para manter o abastecimento confortável por mais de meio século”. O consumo mundial de petróleo foi, em 2000, de 3,6 bilhões de toneladas, e as reservas comprovadas eram de 130 bilhões. Se dividirmos as reservas pelo consumo, podemos concluir que temos o suprimento assegurado por 36 anos. Além das reservas comprovadas, pode-se hoje inferir com razoável precisão as dimensões das reservas a serem descobertas e as reservas ditas prováveis, que estenderiam esse período de “felicidade petrolífaga” de 36 anos para pouco mais de meio século, aparentemente, como diz a revista.

“Qualquer que seja o ritmo de investimentos, e mesmo que a demanda não cresça, haverá falta de petróleo dentro de alguns anos.”

Esse mesmo raciocínio sobre o petróleo era feito nos EUA até o começo dos anos 70, e a razão entre as reservas totais e o consumo dava 40 anos de “abastecimento confortável”. Várias análises convergiam para a mesma conclusão. Houve, entretanto, um especialista discordante. Em 1972, M. K. Hubbert publicou seus resultados: a produção de petróleo nos EUA atingiria um pico dentro de dois ou três anos e depois decairia inexoravelmente. A diferença entre a análise de Hubbert e as demais era a inclusão da redução progressiva da probabilidade de sucesso de cada perfuração, o que o analista extraíra do histórico da prospecção nos EUA e que deriva do fato de que procuramos sempre o objeto de nosso interesse antes nos espaços mais promissores. A justificativa para omitir esse fato decorre da convicção de que o desenvolvimento tecnológico o compensaria. Dessa vez, entretanto, apenas três anos após a publicação dos dados de Hubbert, exatamente como ele previra, a produção americana de petróleo atingiu seu pico e começou a declinar, e hoje, apenas 30 anos depois, não é ela capaz de atender nem a um terço da demanda.

A técnica de Hubbert tem sido aplicada com sucesso em outras instâncias. Pois bem, quando aplicada para o globo, dá um resultado muito diverso daquele referido pela matéria da “Veja”. Embora seja verdade que as reservas totais, divididas pelo consumo atual, dêem como resultado meio século, a triste realidade é que o pico de produção será alcançado até 2010, e já a essa época será insuficiente para atender a demanda por combustíveis líquidos. É claro que continuaremos a ter petróleo por muito tempo, e não será por apenas meio século.

Colin Campbel, mundialmente famoso especialista em petróleo, declarou recentemente que o “início de uma crônica falta de petróleo ocorrerá por volta de 2010”. O que afirmamos é que, embora a relação entre reservas totais e consumo global resulte em 55 anos, qualquer que seja o ritmo de investimentos, e mesmo que a demanda não cresça, haverá falta de petróleo dentro de alguns anos. Como conseqüência, o seu preço dependerá da produção de alternativas competitivas. Se não forem incorporados outros combustíveis líquidos, a economia global será comprometida e sofrerão principalmente os países em desenvolvimento, não-exportadores de petróleo, o Brasil dentre eles.

É claro que deverão ser mobilizadas formas não-convencionais de combustível, como também serão utilizadas tecnologias para a liquefação do carvão. Todavia os riscos ambientais serão imensos e só seriam amenizados com o desenvolvimento de tecnologias de seqüestro do gás carbônico. Como conseqüência, os custos desses combustíveis líquidos serão bastante elevados.

O prejuízo para a humanidade de análises benevolentes, como aquelas nas quais se basearam as conclusões reconfortantes da “Veja”, é que vamos acreditar que não precisamos nos preocupar por muitas décadas com a questão do fornecimento de combustíveis líquidos. Porém o Brasil e a maioria dos países em desenvolvimento, com uma densidade populacional relativamente baixa e demanda de energia futura ainda modesta, podem recorrer a formas de combustíveis derivados da biomassa.

Um cálculo simples mostra que, para substituir toda a gasolina usada no Brasil por álcool etílico, não seriam necessários senão cerca de 2% do território nacional, ou melhor, 5% da área agriculturável. Para substituir o diesel por óleos vegetais seria necessária uma área de dimensões comparáveis. Se hoje o biodiesel ainda não é competitivo, ele certamente o será em breve. Basta ver o que aconteceu com o álcool, cujos custos de produção caíram, em 20 anos, para um terço de seu valor. E as evidências tecnológicas são de que a pirólise e a gaseificação da madeira podem logo se tornar competitivas com os fósseis usados para produzir eletricidade e calor.

Esta, sim, é uma visão reconfortante, e não a falácia da promessa de 50 anos de conforto petrofágico.

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