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O campo em estado de sítio

 

Roberto Rodrigues, presidente conselho da Unica
Roberto Rodrigues, presidente do conselho de administração da Unica

O engenheiro-agrônomo Roberto Rodrigues é um dos maiores especialistas em agronegócio do Brasil. Nascido há 72 anos, em Cordeirópolis (SP), em uma família de produtores rurais, ele acompanhou os ciclos de euforia e dificuldades do campo nas últimas cinco décadas, na vida acadêmica e profissional. Ex-ministro da Agricultura, foi um grande divulgador do etanol brasileiro, ao lado do ex-presidente Lula. “Viajamos o mundo para demonstrar as vantagens ambientais do álcool de cana“, lembra Rodrigues, que é coordenador do Centro de Agronegócio da Fundação Getúlio Vargas (GV Agro) e presidente do conselho de administração da União da Indústria de Cana-de-Açúcar (UNICA). Mas isso foi em um tempo de euforia. O de agora é de crise.

Não faz muito tempo, o Brasil festejava a autossuficiência na produção de combustíveis. Hoje o etanol é pouco competitivo na bomba, usinas estão quebradas e a Petrobras importa grandes volumes de gasolina. O que deu errado?


O governo, de alguns anos para cá, segurou o preço da gasolina como forma de controlar a inflação. Lá se vão sete anos praticamente sem reajustes. Nesse período, subiram os custos de produção do etanol, um produto agrícola. Aumentaram as despesas com mão de obra, com insumos, com a terra, com equipamentos, e assim por diante. Como o etanol só é competitivo quando seu preço equivale a até 70% do valor da gasolina, e o preço dela ficou praticamente inalterado, vivemos a dificuldade atual. Ou se resolve esse negócio, ou o setor entrará em uma profunda decadência. Há sessenta usinas fechadas e mais de trinta em recuperação judicial. O efeito dominó é brutal e afeta municípios inteiros. Há 70000 fazendeiros que dependem das usinas. A indústria de equipamentos também foi sacrificada. Toda a cadeia produtiva foi duramente afetada.

Qual é a reação do governo diante dessa situação descrita pelo senhor?


Aparentemente, agora temos um cenário novo dentro do governo, o que dá certa esperança de que as coisas vão melhorar. Não sei se essa atitude se deve à proximidade da eleição, mas não importa. O fato de a Petrobras viver essa crise imensa, perdendo dinheiro com a venda de gasolina, certamente contribui para resolvermos a questão. Estamos buscando uma solução que procure harmonizar os interesses dos diferentes setores envolvidos. Sem um equilíbrio. ninguém vai sobreviver a longo prazo. Foi com essa ideia que conversei, recentemente, com o ministro Aloizio Mercadante, da Casa Civil.

Sem superar esse entrave, qual é o futuro da indústria do etanol?


Levamos quarenta anos para desenvolver essa tecnologia e ser líderes, mas agora corremos o risco de ficar para trás. Temos um cenário de pesquisa monumental diante dos nossos olhos, hoje. na produção de energia e de materiais derivados da cana. Vejo-o como a maior revolução agroindustrial da primeira metade deste século. Podemos liderar uma transformação mundial, com consequências geopolíticas. Entretanto, fica difícil atualmente promover o etanol no exterior, diante de nossas importações de álcool dos Estados Unidos para suprir uma necessidade derivada do descalabro nas políticas públicas.

Não houve também um erro dos produtores ao se endividarem excessivamente e criarem uma bolha de investimentos?


Houve sim, precisamos reconhecer. Algumas empresas seguiram estratégias equivocadas, enquanto outras se endividaram além do razoável, crendo no aumento contínuo do consumo do etanol. Entre 2000 e 2008, o setor vinha crescendo ao ritmo de 10% ao ano em termos de terra ocupada e novas indústrias. Havia um incentivo enorme no primeiro mandato do governo Lula. Viajamos o mundo para demonstrar as vantagens ambientais do etanol. O álcool emite apenas 11% do gás carbônico emitido pela gasolina, é renovável e, quando originário da cana-de-açúcar, não compete com a produção de alimentos. Mas os erros cometidos pelas empresas não podem ser vistos como o fator preponderante da crise. Não fossem os erros do governo, as perspectivas seriam auspiciosas. Tanto assim que o setor atraiu investimentos de grandes grupos internacionais que nunca haviam se dedicado ao etanol anteriormente.

Como solucionar a questão do preço?


Além da necessidade de um reajuste no preço da gasolina, é preciso haver regras tributárias para incentivar o etanol. É fundamental uma reforma do ICMS (imposto sobre circulação de mercadorias e serviços). Cada estado tem uma alíquota. Existem carros flex em Minas Gerais, por exemplo, que nunca viram uma gota de etanol no tanque, pois o ICMS lá é bem maior que aquele cobrado em São Paulo. Mas estou otimista. As mesmas políticas que prejudicaram o setor foram uma injeção de cicuta na veia da Petrobras, que perdeu um terço do seu valor de mercado em cinco anos. Não tenho a menor dúvida de que esses equívocos serão corrigidos. Senão, seria de uma cegueira inimaginável.

De acordo com diferentes estudos, o agronegócio foi o único setor da economia brasileira que conseguiu obter ganhos expressivos de produtividade nas últimas três décadas. Como isso foi possível?


A agricultura deu saltos fantásticos. Nos últimos 22 anos. a área plantada de grãos avançou 41%, enquanto a produção aumentou 223%. Nenhum pais alcançou, nesse mesmo período, algo semelhante. Uma parte dessa história de sucesso se deve à estabilização da economia. No passado, os produtores ganhavam dinheiro aplicando a juros elevados, e não plantando. O agrônomo era o gerente do banco. Não havia incentivo para investir em tecnologia. Com a estabilização, quem não dispunha de tecnologia e eficiência em gestão simplesmente morreu. Tivemos também de enfrentar a abertura da economia. Todo mundo vivia sob proteção, e passamos a um cenário de proteção zero. Calculo que 150000 produtores tenham quebrado entre 1991 e 1995. Quem sobreviveu foi atrás de tecnologia e de aprimorar a administração. A inflação elevada mascarava as ineficiências. Se o criador levava quatro anos para vender um boi. o custo dele simplesmente sumia. Qualquer boi dava lucro.

A estabilização, portanto, ampliou os ganhos com o avanço da tecnologia?


Certamente. A tecnologia, entretanto, é fundamental. Somos líderes em clima tropical, mas esse processo é dinâmico. Não se pode parar. Felizmente a Embrapa segue avançando, mas outros centros importantes, muitos deles em São Paulo, sentem a falta de recursos para as pesquisas. Precisamos de mais, muito mais dinheiro para a tecnologia. Graças a esse salto fantástico que tanto elevou a nossa produtividade, conseguimos produzir muito mais com a mesma área cultivada. Se tivéssemos estacionado nos índices de produtividade dos anos 90, teria sido necessário plantar mais 69 milhões de hectares para colher a safra que vamos alcançar neste ano. Nossa agricultura preserva muita terra. Isso é sustentabilidade. O Brasil cultiva hoje 76 milhões de hectares. Estamos falando em 9% do território nacional. Com essa área, somos o maior exportador mundial de café, de suco de laranja, de açúcar, do complexo soja, de carne bovina, de carne de frango, de tabaco. Tudo em 9% do território. O agronegócio representou no ano passado uma fatia de 23% do PIB brasileiro, 30% dos empregos e 41% das exportações, ou 100 bilhões de dólares. Não é nenhum exagero afirmar que as atividades agrícolas têm salvado as contas externas do país. Entre julho de 2013 e junho de 2014, o saldo comercial acumulado do agronegócio foi de 82,4 bilhões de dólares. Somados, os outros setores da economia responderam por um déficit comercial de 79,4 bilhões de dólares.

Qual o potencial para aumentar ainda mais a produção brasileira?


A OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e a FAO (Food and Agriculture Organization of the United Nations), o braço da ONU para o tema da alimentação, fizeram um estudo em 2012 que mostra que até 2020 a produção de alimentos teria de crescer 20% para que a segurança alimentar fosse mantida no mundo. A União Europeia, segundo as projeções, pode elevar sua produção em no máximo 4%. Os Estados Unidos e o Canadá podem obter um aumento de no máximo 15%. A região da Oceania não conseguiria um número melhor do que 17%. Países grandes como índia, China, Rússia e Ucrânia poderiam elevar a produção em até 26%. O Brasil pode atingir 40%.

É possível alcançar esse crescimento no espaço de uma década?


Não será fácil, principalmente por causa da deficiência na infraestrutura. Passamos os últimos vinte anos sem investir adequadamente em logística. É preciso, porém, reconhecer que o atual governo finalmente percebeu que não se pode ter concessões sem lucro. Já temos privatizações de rodovias saindo, coisas positivas acontecendo na área dos portos. Espero boas notícias também no campo das ferrovias. Acredito que em dez anos tenhamos uma logística muito melhor. Até chegarmos lá, esse gargalo restringirá dramaticamente nossa capacidade de aumentar a produção.

O Brasil costuma encontrar dificuldades para exportar para alguns mercados, particularmente no caso da carne, por causa de queixas em relação a questões sanitárias. São barreiras protecionistas de outros países ou o país fica devendo nesse aspecto?


Existe certo protecionismo, mas precisamos aprimorar a questão da defesa sanitária. O México acabou com a febre aftosa em 1948. Fizemos um esforço muito grande nessa direção, mas tem sido um esforço desequilibrado. Há estados que se empenham menos do que outros. Existem países vizinhos que também não cumprem sua parte. Não adianta acabarmos com a febre aftosa aqui se ela ainda estiver presente na Bolívia, no Paraguai e na Venezuela. Em 2005, quando surgiu um foco de aftosa em Mato Grosso do Sul, 47 países deixaram de importar carne brasileira.

Acordos comerciais ajudariam a diminuir as barreiras?


Sem dúvida. Cerca de 40% do comércio mundial de alimentos se dá no âmbito de acordos bilaterais. Não temos nenhum tratado desse tipo, exceto por alguns acordos com o Egito e o Líbano. Não há nenhum com grandes economias. Estamos amarrados ao Mercosul. O acordo Mercosul-União Europeia, por exemplo, não sai do papel porque existe um país dentro do nosso bloco que não tem a visão de abertura comercial que o Brasil tem. Estamos oferecendo ao mundo uma abertura comercial que os nossos vizinhos não querem oferecer. Isso restringe demais nosso crescimento. Para nós, tem sido um tango mal dançado. O Mercosul é importantíssimo politicamente, mas não tem dado resultados comerciais. O Chile tem vinte acordos bilaterais de comércio, e o México, sessenta. Nós não temos nada. Estamos perdendo mercado.

O empresário Jorge Gerdau, que preside a Câmara de Competitividade do governo, revelou-se frustrado com a dificuldade em aprimorar a eficiência do setor público. Como a burocracia dificultou a implementação de seus projetos no governo?


Realmente a burocracia é uma fonte de frustração. Temos, por exemplo, doze ministérios que, de uma maneira ou de outra, cuidam de etanol. Sem falar na Petrobras, na ANP (Agência Nacional do Petróleo), na Embrapa. Existem ótimos técnicos em cada um desses órgãos, mas eles não conversam entre si. No mundo inteiro, os ministérios da Agricultura se chamam “Ministério da Agricultura, Floresta e Pesca”. Aqui nós temos dois de agricultura (Agricultura e Desenvolvimento Agrário), um de floresta e um de pesca. Quatro ministros disputam os mesmos recursos, o mesmo orçamento, o mesmo espaço. É um desperdício de recursos e também uma fonte de disputas políticas. É a receita certa para o fracasso.

(Fonte: Revista Veja – Edição 2386)

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