Mercado

Ninguém quer sacrificar suas taxas de crescimento

Ogunlade Davidson: Coordenador do Grupo de Trabalho 3 do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC)

Pode-se dizer que o terceiro sumário do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), “Mitigação das Alterações Climáticas”, divulgado ontem na sede da ONU em Bangcoc, na Tailândia, mitigou os efeitos da disputa entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. Epicentro de um debate acalorado entre Estados Unidos e ricos, de um lado, e China e emergentes, de outro, o relatório confirmou, além de informações científicas, uma evidência política: delegados governamentais estão se empenhando para ver interesses de seus mandatários traduzidos nos documentos.

Ogunlade Davidson foi um dos encarregados de mediar esse conflito de interesses, na posição de coordenador do Grupo de Trabalho 3 do IPCC, responsável pela elaboração do documento. Se faltaram palavras fortes ao terceiro, sobram a Davidson. Em entrevista ao Estado após a conferência, o coordenador sentencia: “Políticos pensam nas eleições seguintes”.

Esse relatório, como o de Bruxelas, volta a revelar pressões políticas fortes sobre as constatações científicas relacionadas ao aquecimento global. Por que ocorrem?

Esse é um relatório sobre mitigação das alterações climáticas. É um assunto que revela fortes vínculos entre ciência, política e economia. Mitigações do aquecimento global envolvem interesses setoriais. Por isso ocorrem divergências. Estamos falando de decisões políticas sobre fatores econômicos com profunda influência social.

Por que os países desenvolvidos insistiram tanto em tentar provar que os custos da mitigação podem ser maiores?

Não devemos tentar distinguir países ricos de países pobres. Vivemos em um mundo no qual a competição é a regra. E as pessoas não gostam de assistir à perda de sua capacidade de competição. O que está em jogo são técnicas, estratégias e infra-estruturas de desenvolvimento que custam muito. Estamos falando de capacidade de disputa de mercados consumidores, de geração de divisas, empregos, renda. Tudo isso é muito complexo. Outro ponto importante é o fato de ser difícil convencer pessoas a tomarem decisões que envolvem grandes volumes de verbas, públicas ou privadas, quando os resultados serão a longo prazo e apenas para evitar um dano maior, como é o caso do aquecimento global. Políticos pensam nas eleições seguintes. Cabe aos cientistas convencê-los, influenciá-los sobre a importância de tomarmos medidas de longo prazo a partir de agora.

Mas as divergências entre desenvolvidos e emergentes aconteceram. Que delegações interferiram mais nas discussões?

Países ricos perguntam quanto vai custar a estabilização do aquecimento global. Países pobres perguntam como podem alterar suas plataformas de desenvolvimento para se adequar às exigências ambientais. Nesse jogo de interesses, há conflitos. Não se trata de chegar a um número, mas de orientar o crescimento.

A intervenção da China no último relatório foi de fato relevante?

A China tem sido sempre muito ativa no que diz respeito aos relatórios do IPCC. Mas todos os países têm suas demandas e seus interesses. Não podemos esquecer que a China está se tornando uma potência econômica movida pelo maior número de habitantes que a humanidade jamais viu. O crescimento na China é incrível, de 10% há quase dez anos, e envolve uma população superior a um bilhão de pessoas. Os interesses chineses são completamente diferentes dos demais. O mundo nunca teve uma experiência de negociação com as circunstâncias que verificamos no IPCC. O que estamos tentando fazer é indicar caminhos para que o desenvolvimento seja sustentável justo no momento em que essa potência cresce mais e que novas tecnologias de energia surgem. Tudo isso mexe com interesses. Ninguém quer sacrificar suas taxas de crescimento.

E quanto à delegação do Brasil?

A delegação brasileira tem sido sempre muito ativa nos relatórios do IPCC. Os brasileiros propuseram uma contribuição de PIB igual ao crescimento da temperatura, o que vem sendo uma idéia muito popular entre cientistas. A delegação brasileira também é muito ativa em termos de manejo da terra, por exemplo. Evidente que o país tem seus interesses, como quando falamos de desmatamento. O fato é que os estudiosos falam do Brasil quando o tema é meio ambiente. É necessário que os brasileiros também falem do Brasil.

A energia nuclear foi citada como alternativa à produção de eletricidade, para insatisfação de ambientalistas. Por que a comunidade científica decidiu citá-la?

É um dos pontos que geraram mais reflexão no IPCC. O relatório menciona todas as opções de mitigação, mas também fala dos problemas da energia nuclear. Ninguém está aqui para dizer que a energia nuclear é perfeita, é boa ou muito ruim. No entanto, precisamos discuti-la como uma alternativa, por ser muito usada em todo o mundo. É preciso ainda que discutamos seus custos, elevados demais. Muitos países não querem ou não podem investir em energia nuclear em razão dos investimentos que demandam.

Por que os biocombustíveis são tratados de maneira tão discreta nos relatórios do IPCC? O documento, na parte sobre as alternativas aos combustíveis fósseis, se mostra superficial sobre a opção.

O relatório não é superficial, é claro sobre biocombustíveis. Eles são divididos em duas categorias. A primeira delas engloba a biomassa, na qual precisamos avançar. Agora o mundo está evoluindo em outras direções, no sentido do etanol e do biodiesel, que não causam tantos problemas ambientais, mas que têm impactos sociais e econômicos importantes. O etanol é usado em circunstâncias muito específicas. Sabemos que o Brasil é líder na produção de tecnologia para sua exploração comercial, mas é preciso fazer várias outras análises concomitantes. Ninguém pode simplesmente deixar de usar a terra para outros fins que não o de geração de energia. É uma questão a se pensar. O que precisamos hoje é propor análises sobre a viabilidade dessa produção em paralelo a todas as outras, de alimentos. Precisamos também melhorar a qualidade de grãos que dão origem ao combustível, para que rendam mais. Há muitas vantagens em biocombustíveis, mas há muito o que pesquisar ainda.

O documento propõe um patamar de concentração de CO2 na atmosfera entre 445 ppm (partes por milhão) a 710 ppm, uma margem muito larga. Por que não ser mais específico?

Quando falamos em estabilizar os níveis de concentração de CO2 na atmosfera em 2030 precisamos ter como meta algo realista, em torno de 600 ppm (hoje a concentração é de 379 ppm). Da mesma forma, precisamos ter em mente uma informação: esse nível de concentração é perigoso. Para ser franco, considero realmente difícil conseguirmos atingir esse o nível de concentração. É possível. Mas eu não estou certo de que conseguiremos.

Com 600 ppm, o aquecimento global será da ordem de 4ºC, quando 2,4ºC já poriam em risco 30% das espécies vivas, conforme o segundo relatório do IPCC.

Sim, o impacto vai ser muito severo. Veremos muitos países sofrerem de stress climático, em especial os pobres e em desenvolvimento. Claro, precisamos de mais e mais análises. Mas as informações que temos nos levam a entender que precisamos ficar preocupados com o que está a caminho de acontecer no planeta, em especial em algumas regiões. Dois graus de elevação na temperatura será demais. E pode ser ainda maior.

Banner Revistas Mobile