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Municipalização. Não se perca a História pelos discursos

Foto: Sifaeg/Divulgação

Arnaldo Jardim*

O eleito Presidente da República Jair Bolsonaro tanto quanto o Governador de São Paulo João Doria, proclamaram posicionamentos municipalistas como se das urnas, além de votos, tivessem recolhido fortes reivindicações dos eleitores.

Porém, pouco ou nada se discutiu nas campanhas sobre os municípios, as cidades brasileiras e seus cidadãos. Ficou-se nas abstrações entre esquerda, direita, corrupção e honestidade. Não se perca a História pelos discursos até porque nela a questão do municipalismo compõe a substância da democracia. Na Constituição de 1988 os municípios brasileiros passaram a ser entes federados com autonomia e participação.

Descentralizar, segundo o ex-governador paulista André Franco Montoro, era colocar o governo mais perto do povo e, por isso, torná-lo mais participativo, mais eficiente e mais democrático. No último 15 de março comemorou-se 35 anos da posse de Montoro, eleito em 15 de novembro de 1982, nas primeiras eleições diretas para governador após o golpe militar de 1964.

É importante resgatar o pensamento político e a prática administrativa daquele governo. Especialmente porque nessas mais de três décadas, embora se venham firmando as raízes da democracia representativa brasileira, estamos longe ainda da democracia participativa, aquela que testa a real qualidade dos governos e forma nações. Prova disso é que nesse mesmo período ainda somos surpreendidos frequentemente por ações e decisões autoritárias e por uma forte concentração de poderes administrativos e econômicos na União que vivem a arranhar a vocação federativa constitucional.

Reconhecido por acolher várias correntes progressistas em sua gestão, aquele Governo Democrático de São Paulo plantou as sementes para a primeira safra de participação dos cidadãos após anos de ditadura. Resgatou o respeito aos direitos humanos – foi o primeiro governo no País a criar um Conselho das Comunidades Negras e um Conselho da Condição Feminina – promoveu permanente diálogo entre as classes sociais com os trabalhadores e o resgate das administrações locais por meio da municipalização dos recursos, serviços do estado e reposicionamento dos prefeitos como lideranças fundamentais na consolidação da República.

“O indivíduo”, dizia Montoro, “não mora no Estado, na União, mora no município, onde se dá todo o processo político. Logo, tudo o que for administrado em menor escala será mais bem administrado”.

No meio de uma das mais graves crises econômicas do País, com os cofres vazios herdados das administrações anteriores, o governo enfrentou de imediato uma forte contestação. Fome e desemprego foram os ingredientes que motivaram a manifestação que derrubou as grades do Palácio Bandeirantes, sede do governo paulista, dois meses após a posse de Montoro.

O governo inteiro orientou-se para enfrentar o desafio da fome. Mas os dois grandes projetos estruturantes da participação democrática daquela administração foram o da municipalização da merenda escolar (antes com fornecimento e distribuição concentrados no estado) e da criação dos escritórios regionais de governo. A municipalização da merenda incentivou a produção local, a melhoria de qualidade e a adequação regional dos alimentos. Foi um importante indutor de decisões e recursos para os municípios brasileiros. A municipalização do ensino fundamental, por exemplo, tem hoje no Brasil chancela constitucional, como constitucional e mandatório é o financiamento da educação e o aperfeiçoamento do magistério.

A urgência em debelar a fome reforçou a determinação de descentralizar a administração paulista. Secretaria do Planejamento e Cepam – Centro de Estudos e Pesquisas de Administração Municipal, da Fundação Prefeito Faria Lima, vinculado à Secretaria do Interior, produziram moderna radiografia paulista. O estado foi dividido em 42 regiões autônomas (Escritórios Regionais de Governo) reunidas pela homogeneidade de seus problemas e aspirações e regidas por conselhos deliberativos e executivos de prefeitos, das secretarias e instituições estaduais e com participação das populações locais.

Na Secretaria do Interior, comandada por Chopin Tavares de Lima, antigo companheiro de lutas de Montoro, concentrava-se a efervescência política das práticas de descentralização. Chopin foi essencialmente uma figura programática e pragmática de governo. Em sua secretaria estavam abrigadas a Coordenadoria dos Escritórios Regionais do Governo, a Fundação Prefeito Faria Lima, a Sudelpa – Superintendência do Desenvolvimento do Litoral e um grupo eclético e criativo de democratas cristãos, ambientalistas, comunistas e socialistas ligados por profundas convicções democráticas e ética política.

Dali sugiram ideias como a da vaca mecânica, máquina que produzia leite de soja, sucos e sopas para compor a merenda escolar, da produção de peixes em represas do estado e dos consórcios intermunicipais, formados para atacar e resolver problemas comuns como de abastecimento de água, destino final de esgotos e resíduos sólidos, informatização, compra de remédios e fabricação de materiais de construção. Os consórcios – como os de uso e conservação das águas – estão hoje incorporados à vida nacional como alternativa política e gerencial eficaz à centralização de decisões e recursos na União e nos estados.

Chopin vislumbrou um novo padrão: “ser um bom prefeito é garantir um profundo sentido social em sua administração, priorizando programas de alimentação, assistência ao pequeno produtor, educação, saúde e realizando um trabalho eficiente medido também pelo grau de integração da comunidade”.

As ideias do municipalismo progrediram no Governo Democrático de São Paulo com o engajamento do vice-governador Orestes Quércia, eleito para governar São Paulo na gestão seguinte. Quércia liderou os prefeitos paulistas e de outros estados nas propostas de legislação destinada a garantir maiores recursos ordinários e constitucionais e efetiva autonomia republicana aos municípios. Consolidou, no estado, a emergência dos prefeitos como sujeitos das histórias de seus municípios. Governador, prosseguiu com foco no cidadão e nos municípios quando lançou o Rádio Patrulhamento Padrão, uma iniciativa de aproximar a polícia da comunidade, desenvolveu ações de fortalecimento do interior, como a da regionalização da produção.

O fortalecimento dos municípios, dos prefeitos, a descentralização política e executiva do estado e a participação do povo nas decisões sobre seu destino valeram a São Paulo uma importante liderança na luta contra a ditadura e, especialmente, no movimento de reinvindicação de eleições diretas para a Presidência da República. São Paulo reuniu 300 mil pessoas, na Praça da Sé, no primeiro comício de porte pelas Diretas Já, em 25 de janeiro de 1984. E um milhão e meio de cidadãos, no dia 16 de abril seguinte, na maior manifestação democrática pelas eleições diretas realizadas no País.

Um dia houve quem confundisse – mesmo entre seus próprios pares – a vocação de Montoro para ouvir e compartilhar como fraqueza. Talvez o tempo lhes tenha ensinado que era apenas uma vocação democrática incorrigível, necessária e cada vez mais atual!

Não será pela vontade e empenho do Presidente da República ou dos governadores entretanto que os municípios e seus cidadãos poderão usufruir do que lhe asseguraram os constituintes. Nossos legisladores precisam rever a Constituição neste aspecto e repactuar nosso pacto federativo, de maneira que os municípios, onde o povo mora e está mais próximo de sua administração, possam responder aos anseios, necessidades de sua população. Até agora prefeitos e vereadores vivem de pires na mão requerendo verbas federais a seus deputados federais, senadores, governo federal para responder às múltiplas responsabilidades que receberam sem contudo contarem com orçamento correspondente.

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