Engenheiro de materiais, Fabio Coutinho Antunes integra um seleto grupo de pesquisadores em trabalho na Unicamp, em Campinas (SP), que promete fazer história no Brasil – e, por extensão, no mundo.
No caso, o grupo atua no desenvolvimento de células cerâmicas que irão gerar energia elétrica usando etanol e hidrogênio. Por sua vez, essa energia será empregada em motores híbridos.
Tais células integram o universo da bioeletrificação. É um tema bem árido para quem está fora da Academia. Mas nesta entrevista ao JornalCana, Antunes revela de forma bem didática sobre essa tecnologia em curso. Confira:
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JornalCana: Em linhas gerais, o que é bioeletrificação?
Fabio Coutinho Antunes – Bioeletricidade é um termo há muito tempo empregado em ciências biológicas. Esse termo refere-se à potenciais e correntes elétricas gerados por bactérias, células animais, tecidos ou organismos vivos.
Entretanto, a bioeletrificação, no cenário atual, é a transformação do sistema de potência (powertrains) de veículos, baseados na combustão interna de um combustível fóssil, em um sistema mais eficiente que transforma energia química de um biocombustível renovável diretamente em elétrica com baixíssima emissão de carbono.
JornalCana: De forma bem didática, o que são as células a combustível de óxido sólido (SOFCs) em desenvolvimento no CINE na FEEC/Unicamp e que têm tem sua participação?
Fabio Coutinho Antunes – SOFCs são dispositivos cerâmicos capazes de transformar a energia química armazenada nas ligações químicas de um combustível, tais como monóxido de carbono (CO), hidrogênio (H 2) ou etanol (C 2 H 5 OH), diretamente em energia elétrica.
Por exemplo, uma célula SOFC é composta por um eletrólito denso, condutor de ânions oxigênio, separado pelo anodo e catodo porosos. O H 2 é injetado na superfície do anodo das SOFCs enquanto no catodo injeta-se ar.
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O oxigênio molecular (O 2), presente no ar, sofre redução no catodo tornando-se ânions O 2- , que difundem através do eletrólito para reagir com o H 2 no anodo formando água (H 2 O), calor e elétrons livres que são direcionados para um circuito externo (energia elétrica) a fim de carregar a bateria ou alimentar o motor elétrico de um veículo híbrido (eletrificado).
No caso do etanol como combustível, serão produzidos água, energia elétrica, calor e dióxido de carbono (CO2).
Mesmo com a emissão de CO2, o uso de etanol como biocombustível nesses dispositivos pode ser considerado como geração de energia limpa, pois a baixa quantidade de CO2 emitido é capturado durante o processo de fotossíntese das lavouras que produziram o etanol, tal como a cana-de-açúcar brasileira, tendendo a neutralidade de carbono.
JornalCana: Como o etanol entra nessas SOFCs? Se possível, exemplifique: serão necessários quantos litros para gerar eletricidade e autonomia (em kms) para o motor?
Fabio Coutinho Antunes – O etanol pode ser usado indiretamente ou diretamente nas SOFCs.
Se for usado indiretamente é necessário um reformador externo que transforma o etanol em CO e H2. E estes são combustíveis que podem ser usados na SOFC para geração de energia elétrica limpa.
Se o etanol for usado diretamente, o próprio anodo da SOFC pode transformá-lo diretamente em H 2 ou energia elétrica, pois os materiais usados no anodo da SOFC (região onde ocorre a oxidação do combustível) são os próprios materiais eletrocatalíticos do reformador externo.
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JornalCana: Então o etanol é estratégico?
Fabio Coutinho Antunes – O etanol é estrategicamente importante no cenário socioeconômico brasileiro, porque além de ser renovável, nosso país possui a cadeia de produção, logística de transporte e infraestrutura de distribuição desse combustível líquido bem estabelecida.
E, o mais importante: reduziremos substancialmente a emissão de gases de efeito estufa responsáveis pelo super-aquecimento global. Em agosto de 2016, a Nissan lançou no Brasil o protótipo e-bio Fuel Cell. Trata-se de um veículo eletrificado e-NV200 com uma bateria (24 KWh) e SOFC (5 KW) que alimentam um motor elétrico usando um tanque de apenas 30 litros de etanol.
Com essa quantidade de combustível esse veículo é capaz de atingir distâncias de até 600 km usando esse tipo de powertrain.
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JornalCana: Estamos falando de célula a etanol anidro, hidratado, 2G, ou qualquer um?
Fabio Coutinho Antunes – Tanto o etanol de segunda geração como anidro ou hidratado pode ser usado como combustível nas SOFCs.
Entretanto, durante a reforma externa ou oxidação do etanol na SOFC ocorre a deposição de Carbono na superfície dos metais catalisadores do reformador externo ou do anodo da SOFC diminuindo a performance de ambos ao longo do tempo.
O ideal é utilizar uma mistura de 10%vol de etanol/90%vol. de água pois essa faixa garante a não deposição de Carbono no reformador ou no anodo da SOFC.
JornalCana: Em que fase está o desenvolvimento? Há alguma previsão de a tecnologia ser testada?
Fabio Coutinho Antunes – Estamos na Fase 1 do projeto. Essa fase trata-se da obtenção de um stack (pilha) de SOFCs suportadas em metal de 3 geração (MS-SOFCs) de até 5 KW que será integrada à um conjunto de baterias e supercapacitores como principal sistema de potência em veículos eletrificados com bioetanol.
Acreditamos que entre 3 e 5 anos apresentaremos esse protótipo em escala de laboratório.
Na Fase 2 do projeto pretendemos captar recursos de empresas e do governo para a embarcação dessa tecnologia integrada em um veículo leve e depois em uma Van a fim de substituir o diesel por bioetanol. Nossa outra intenção na Fase 2 é o repasse do sistema de gestão de qualidade da produção em massa desse sistema à indústria automotiva brasileira.
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JornalCana: Há experiências ou tecnologias SOFCs em uso no mundo? Se sim, exemplifique, por favor.
Fabio Coutinho Antunes – Sim. Desde a década de 60 as SOFCs vêm sendo pesquisadas e desenvolvidas tecnologicamente. Oônibus espacial norte-americano Apollo 11, lançado em 16 de julho de 1969, foi o primeiro foguete enviado com um módulo de SOFC. Empresas como a japonesa Mitsubishi, a inglesa Rolls-Royce e alemã Siemens Westinghouse produzem SOFCs para geração de energia centralizada para casas e indústrias.
No setor de mobilidade, a empresa inglesa Ceres Power, spin-out nascida da universidade Imperial College London, produz em escala stacks de MS-SOFCs de baixo custo para uso de H 2 como combustível em veículos eletrificados na Europa.
JornalCana: Com o emprego do etanol nesta tecnologia em desenvolvimento, o Brasil sai na frente, em termos mundiais, na busca de nova aplicação de um biocombustível reconhecimento de peso sustentável de descarbonização?
Fabio Coutinho Antunes – Com certeza. Se o Brasil optar pelo desenvolvimento ou importação de carros elétricos, seria necessário um parque de geração de energia limpa, assim como a sua distribuição para carregar as baterias desses veículos, estimados em mais ou menos R$ 1,5 trilhão.
Com o veículo eletrificado por um sistema híbrido de baterias menores e supercapacitores integrados às MS-SOFCs, aproveitaremos a rede de valores construída pela agroindústria do bioetanol ao longo de décadas reduzindo efetivamente a emissão de gases de efeito estufa.
Nesse cenário, estaríamos caminhando para a completa descarbonização do setor automotivo.
Sem dizer, que podemos exportar essa tecnologia para países que produzem etanol, tais como a Índia e Tailândia e até mesmo os Estados Unidos, já que o Brasil e os Estados Unidos produzem cerca de 99% do bioetanol mundial.
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JornalCana: Assim que a tecnologia estiver pronta, ela será patenteada pelo CINE ou pela Unicamp? E quem primeiro terá direito de aplicar as células?
Fabio Coutinho Antunes – Em relação à propriedade intelectual, será discutida e acertada posteriormente, entretanto, quem ajudar a desenvolver com recurso financeiro e intelectual terão prioridades.
JornalCana: Em sua opinião, a eletrificação chega de vez ao Brasil dentro de quanto tempo? Por quê?
Fabio Coutinho Antunes – A eletrificação do setor de mobilidade brasileiro já está ocorrendo. Não somente a Unicamp, mas outros centros de pesquisa que constituem o CINE, tais como IPEN-USP, FEI e UFMG dentre outros estão captando recursos junto à empresas, tais como VW, Toyota, Stellantis, Bosch, Nissan, CAOA, etc.
Há também o governo, através dos programas FINEP e FUNDEP ROTA 2030, para o desenvolvimento nacional desse sistema de powertrain em veículos híbridos para utilização do etanol como combustível nas SOFCs.
Nosso melhor cenário é que dentro de 6 anos já possuíremos um veículo bioeletrificado com etanol 100% nacional.
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Quem é Fábio Antunes
Possui graduação em Engenharia de Materiais com ênfase em Materiais Poliméricos pela Universidade Federal de São Carlos (2006), mestrado em Ciência e Engenharia de Materiais (2009) e doutorado em Ciência e Engenharia de Materiais (2016) pelo mesmo programa de pós-graduação em Ciência e Engenharia de Materiais da UFSCar (PPGCEM).
Tem experiência na área de engenharia de interfaces em materiais cerâmicos, tendo como principal linha de pesquisa o desenvolvimento, caracterização eletroquímica, estrutural e microestrutural de interfaces em eletrólitos compósitos homogêneos (fase dispersa e orientada) e heterogêneos (filmes multicamadas e fase dispersa e orientada) para aplicação em células a combustível de óxido sólido (SOFCs: solid oxide fuel cells).
Possui experiência na produção de componentes de SOFCs por spin e dip coating de sol gel e tape casting de suspensões cerâmicas aquosas ou orgânicas.
Atualmente é pós doutorando na Divisão de Armazenamento Avançado de Energia (AES) do Centro de Inovações em Novas Energias (CINE) na FEEC/UNICAMP onde atua no desenvolvimento de células cerâmicas suportadas por metal (MS-SOFCs: metal supported-solid oxide fuel cells) para geração de energia em veículos híbridos usando bioetanol e hidrogênio.
Delcy Mac Cruz
Esta matéria faz parte da edição de janeiro do JornalCana. Para ler, clique AQUI!