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O etanol brasileiro precisa de uma rota tecnológica

Confira artigo de Marcos Buckeridge, professor do Instituto de Biociências da USP

O etanol brasileiro precisa de uma rota tecnológica

A ciência da cana-de-açúcar e do etanol produzido por ela é amplamente dominada pelos cientistas brasileiros. Porém, isso tudo acontece a despeito de não termos um acordo nacional que funcione como uma ROTA que inclua uma cadeia articulada de produção de conhecimento, tecnologia, indústria, mercado e sociedade.

Uma vez que adquirimos uma perspectiva científica de um sistema, é possível conectar todo esse conhecimento com o que pensam o governo, a indústria e a população. Estados Unidos, Europa, Japão e China sempre declaram as suas rotas e via de regra obtêm sucesso. E parece claro que dominam mercados.

Ao liderar a produção do conhecimento numa área e montar uma rede interna de conexões no país, pode-se antecipar problemas. Dessa forma um país tem poder de delinear ações nacionais e internacionais rápidas, eficientes e rentáveis. No caso do bioetanol, estabelecer uma rede de conexões significa desenhar uma ROTA para o futuro. Ao combinar com os vários setores da sociedade sobre como vamos avançar nessa área, permitiremos que todos os atores se preparem e se posicionem bem.

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Marcos Buckeridge

Uma ROTA do bioetanol exige que elementos importantes se interliguem. São eles a ciência, o desenvolvimento tecnológico, a indústria, o mercado, as várias instâncias de governo e a população. Tenho de reforçar isso no texto porque o óbvio parece não estar em pauta.

Tivemos alguns ganhos, como a aceleração na indústria do etanol com os carros flex desde os anos 2000. Em meados dessa década, teve início uma onda de pesquisa científica sobre o etanol de segunda geração.

Por outro lado, houve uma defasagem entre as iniciativas da ciência e da indústria. Esta última foi estimulada a produzir etanol a partir de bagaço e passou a aplicar tecnologias já existentes na época.

Apesar do enorme esforço dos cientistas, não houve tempo hábil para desenvolver as tecnologias necessárias para que a indústria pudesse estabelecer processos de produção altamente eficientes.

O resultado, para o Brasil, foi a aplicação principalmente de tecnologias que haviam sido desenvolvidas fora do país e geralmente não tão bem adaptadas à cana.

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Esta defasagem foi inevitável, pois tínhamos pouca ciência sobre o etanol 2G no início do século e precisávamos de pelo menos uma década para produzir o conhecimento básico e tecnológico que permitisse aplicações diretas na indústria.

No fim, lá se vão quase duas décadas e só agora está sendo possível estabelecer uma sincronização. A melhor conexão entre ciência e indústria culmina em uma interação melhor com o mercado. Aí entram iniciativas como o Renovabio, que foi comandado pelo Ministério de Minas e Energia e lançado em 2016. O RenovaBio vislumbra a expansão da produção de biocombustíveis, fundamentada na previsibilidade e sustentabilidade ambiental, econômica e social.

A conexão do subsistema ciência-tecnologia/indústria-mercado com a política é igualmente importante. É imperativo que haja “vontade política” para que a ideia de usar cana para fazer etanol avance. Tivemos variações na vontade política ao longo dessas duas décadas, com euforia em alguns momentos e um certo desprezo em outros. Apesar disso, o setor de produção de bioetanol se manteve firme.

De fato, podemos constatar que o brasileiro acredita e consome veículos a álcool, combustível mais barato e não poluente.

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Palha da cana é a fonte de produção do E2G (Foto: Marcus Leoni)

Outro elemento que tem de se conectar com o subsistema ciência-tecnologia/indústria-política é o ambiental. Hoje não é viável a produção de biocombustíveis com baixa sustentabilidade ambiental.

As plantações de cana têm de se articular com uma visão de regeneração de florestas e caminhar para um aumento de produtividade que permita produzir mais com menos terra. Mais que isso, se possível, regenerar florestas no espaço que economizarmos.

Chamo isto de “caminho do meio”, que seria uma associação da produção de cana com alta tecnologia, além da regeneração de florestas. Depois de propor a ideia do “caminho do meio” em 2007, mostramos, em 2012, por meio de modelagem, que florestas como as da Mata Atlântica sequestram 18 vezes mais carbono do que os canaviais.

Portanto, mesmo que o espaço ganho com maior produtividade seja relativamente pequeno, seu potencial é tão grande que vale a pena usar. Além disso, a produção do etanol 2G aumenta muito mais a produtividade (em termos de etanol por hectare usado para planta cana) e isto aumenta bastante a sustentabilidade do sistema.

Quando se adotam estratégias sustentáveis em um sistema como o canavieiro, promove-se benefício em termos de conservação da biodiversidade. Nesse ponto, é bom lembrar de outro avanço tecnológico notável que tivemos nessas duas décadas.

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O Estado de São Paulo desenvolveu e testou tecnologias de recuperação de florestas. Ao usarmos esta estratégia de forma acoplada a um sistema agrícola como o canavieiro, aumentamos ainda mais a pegada sustentável do etanol brasileiro.

A outra ponta de conexão, que fecha o ciclo, é a população. Consumidores precisam compreender a importância que tem um sistema sustentável de produção de biocombustíveis para um país.

Hoje, o nosso etanol de primeira geração (1G), feito a partir do açúcar da cana, não é bem aceito na Europa, pois há uma ideia de que nós retiramos as florestas para plantar cana.

A Mata Atlântica foi de fato devastada pela colonização feita pelos próprios europeus, mas não só pela cana. Antes disso foi a exploração do pau-brasil, depois o café e só depois veio a cana-de-açúcar em larga escala. Desse modo, uma ação sustentável no sentido de regenerar a Mata Atlântica e o Cerrado, ao mesmo tempo em que aumentamos a produtividade da cana, seria um caminho para um restabelecimento da biodiversidade. Só não podemos ser ingênuos em acreditar que daria para ocupar todo o espaço novamente só com florestas.

Isto não é possível, pois a nossa população depende dos combustíveis para manter as suas atividades. E mais, se fizermos um pagamento desse passivo de devastação das florestas de forma sustentável, estaremos revertendo em parte um processo causado pela colonização europeia.

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Seria o equivalente aos europeus aumentarem a produção das videiras para produzir mais vinho com menos terra e ao mesmo tempo regenerar as suas florestas originais.

Ainda que a conta não possa ser inteiramente paga, seu pagamento parcial nos ajuda a enfrentar as mudanças climáticas, promovendo medidas de adaptação que podem ajudar sobremaneira no esforço que a humanidade precisa entre hoje e 2050 para evitar passarmos de 2ºC no planeta. Mas as pesquisas seguem em busca de novas soluções.

O Brasil tem se destacado nas áreas de produção de biocombustíveis e também na regeneração de florestas. Porém a articulação entre as partes não tem sido harmônica e interconectada na forma de uma estratégia nacional.

Nós nos colocamos, sim, em uma ROTA para produzir álcool nesses 20 anos, mas foi de maneira fortuita e sem uma coordenação. Nesse momento, com a Europa e os EUA adotando um rumo forte no sentido da eletrificação automotiva, corremos o risco de que a nossa tecnologia cana e etanol se torne obsoleta.

Os europeus já adotaram a estratégia de não ter mais carros com motores a combustão a partir de 2050. Se o Brasil não participar dessa visão mundial, que nesse momento parece inevitável, podemos ficar para trás e, pior, ainda mais dependentes.

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Para decidir o que fazer, é importante pensarmos como país. É preciso adotar uma ROTA para 2050 em que possamos dar mais certeza ao mercado e à indústria do que vai acontecer nos médio e longo prazos. Se isto acontecer, teremos condições de avançar mais rápido e ocupar espaços importantes.

Um exemplo é o da produção de hidrogênio a partir do etanol. O domínio desta parte da tecnologia do sistema cana-etanol pode ser um caminho para a eletrificação sustentável.

Há algumas possibilidades. Podemos, por exemplo, produzir automóveis capazes de usar o hidrogênio das moléculas de etanol e eletrificar o próprio motor. Adicionalmente, podemos usar o sistema “etanol para hidrogênio” em motores grandes, como os de caminhões e ônibus, focando na sustentabilidade do transporte de massa e o escoamento de produtos pelo país.

Uma outra opção é exportar parte do etanol para que os europeus produzam seu próprio hidrogênio. As vantagens de transportar etanol e não hidrogênio de um continente a outro são enormes e podemos nos beneficiar muito disto.

Ter uma ROTA sistemicamente interligada entre os subsistemas brasileiros em torno do bioetanol significa combinar metas de médio e longo prazos e criar uma espécie de pacto entre os diversos setores da sociedade para que todos se beneficiem, com lucros para as empresas, mais empregos para a população e um aumento na sustentabilidade que beneficia o meio ambiente e a todos os que dependem dele.

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O maestro a conduzir o Brasil nesta ROTA deve ser o governo. Só que, por ficar quatro anos no poder, a ROTA se torna vulnerável. Assim, é possível que o parlamento possa ser o condutor, através da adoção de uma estratégia nacional politicamente alinhavada com o Executivo.

Se a ROTA for discutida e aprovada pelo parlamento, com a participação dos diversos subsistemas pelo país e com uma visão também dos impactos internacionais, teremos um sistema mais parecido com uma política de estado e menos dependente dos ciclos de quatro anos da política.

Isto poderia conferir maior previsibilidade ao sistema, já que todos saberemos o que precisa ser feito. Só assim poderemos dizer que o Brasil tem uma ROTA para o bioetanol.

O Brasil é um país continental e de grande peso no mundo. O respeito à visão sustentável do país trouxe a COP 30 para Belém do Pará, que irá acontecer em 2025.

Em um país de grande dimensão, com sólido conhecimento e forte indústria nas áreas das energias renováveis e da conservação de florestas, um alinhamento nacional com uma ROTA tecnológica previsível e consistente terá certamente repercussões internacionais por sua sustentabilidade.

Por Marcos Buckeridge, professor do Instituto de Biociências da USP