Há um ano e meio, o presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, foi recebido pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva com um churrasco na Granja do Torto, em Brasília. Durante o domingo, entre uma lasca de picanha e outra, ele ouviu do colega brasileiro insistentes argumentos favoráveis ao uso de combustíveis alternativos como o etanol, o álcool que abastece os tanques de mais de 1 milhão de veículos no Brasil. Nesta semana, Bush virá a São Paulo para lançar uma parceria Brasil-Estados Unidos que pretende disseminar pelo mundo o uso do álcool. “Esta visita é uma oportunidade histórica para o país”, afirma o ex-ministro da Agricultura Roberto Rodrigues, um dos maiores especialistas brasileiros em biocombustíveis. “O Brasil tem a oportunidade de assumir a liderança do processo de substituição do petróleo.”
Juntos, Brasil e Estados Unidos são responsáveis por 75% da produção mundial de etanol. Uma parceria firmada por Bush e Lula levará à criação de um fórum internacional de biocombustíveis, que pretende incentivar outros países a iniciar produção própria de álcool. O objetivo é criar no futuro um mercado maior, capaz de representar uma alternativa ao petróleo, cujas reservas são limitadas e, em sua maioria, localizadas no complicado Oriente Médio ou na hostil Venezuela. “O presidente Bush quer obviamente reduzir a dependência do petróleo”, diz Donna Hrinak, ex-embaixadora dos EUA no Brasil.
A parceria com o Brasil também oferece vantagens políticas para Bush. É uma forma de ele mostrar preocupação com a América Latina e tentar deter a crescente influência do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, que busca tornar-se a maior liderança da região. “O problema é combater a popularidade do discurso antiamericano de Chávez na América Latina”, afirma Peter Hakim, presidente do Inter-American Dialogue, centro de análise de Washington.
Os EUA querem reduzir a dependência do petróleo e a influência da Venezuela de Hugo Chávez
Na quinta-feira, Chávez acusou o golpe e anunciou um acordo com Cuba, grande plantadora de cana, para construir 11 usinas de álcool. Um dia antes, ele havia declarado que aumentar a produção de álcool seria desastroso, pois para plantar cana seria preciso deixar de plantar alimentos – um argumento bastante discutível. Também não mencionou que a Venezuela, um dos maiores produtores de petróleo do mundo, tem a perder com o avanço do álcool.
Por ser o país que melhor domina no mundo a produção e o uso do álcool como combustível, o Brasil é o sócio ideal na visão dos americanos para tocar o projeto. Para o Brasil, o acordo abre a perspectiva de se tornar um parceiro importante da maior economia do mundo e de ser o líder de um novo setor em expansão. Além de bilhões de dólares em exportações, ele pode render ao país um papel relevante na geopolítica mundial. Na visão de alguns especialistas, o Brasil poderia tornar-se uma espécie de Arábia Saudita do álcool.
“A parceria com os EUA pode permitir ao Brasil exportar tecnologia para o resto do mundo”, diz Roberto Rodrigues. “Não vamos vender apenas álcool, mas a capacidade de fazer moendas, destilarias, a tecnologia de corte da cana, o trator, a inteligência.” De acordo com ele, hoje o Brasil produz cerca de 17 bilhões de litros de álcool, com uma área plantada de 3 milhões de hectares de cana. Em dez anos, a produção deverá subir para 130 bilhões de litros. Só a receita da exportação do álcool poderá chegar a R$ 130 bilhões e gerar 1 milhão de empregos.
O Brasil começou a desenvolver a alternativa ao petróleo com o Proalcool, em 1975, dois anos após o primeiro choque de oferta de petróleo pelos países produtores árabes. Hoje, o álcool brasileiro é o mais barato do mundo: seu custo de produção é de US$ 0,22 por litro, contra US$ 0,30 dos concorrentes. “O Brasil tem uma experiência valiosa nessa área, que falta aos Estados Unidos”, diz Donna Hrinak. “Pode trazer mais para a mesa e liderar o processo.” O Brasil domina a tecnologia para produzir álcool da cana, a melhor e mais barata fonte. Tem uma cadeia de produção inédita no resto do mundo, com usinas, destilarias, sistema de distribuição e venda do combustível para uma frota de mais de 1 milhão de veículos. Os Estados Unidos produzem álcool do milho, uma fonte mais cara e menos eficiente, e aplicam o produto em uma escala muito menor.
A parceria Brasil-Estados Unidos não deverá significar, no curto prazo, redução da tarifa de importação aplicada pelos americanos sobre o álcool brasileiro (hoje, US$ 0,15 por litro). A remoção da tarifa esbarra nos produtores de milho do Meio-Oeste americano, cujo lobby no Congresso americano é fortíssimo. “O Brasil deve pressionar para ter a redução da tarifa, mas calculo a chance de isso ocorrer em menos de 20%”, diz o cientista político David Fleischer, da Universidade de Brasília (UnB), especialista em relações entre o Brasil e os EUA. De acordo com Roberto Rodrigues, a tarifa não é um problema maior porque o Brasil ainda levará três ou quatro anos para se tornar um grande exportador. No ano passado, o país exportou 1,6 bilhão de litros, 10% da produção.
A agenda do álcool, um combustível mais limpo, é também uma tentativa de Bush de melhorar sua imagem. Ele é visto com um homem da indústria do petróleo, em nome da qual teria movido a Guerra do Iraque e impedido a assinatura do Protocolo de Kyoto, que prevê a redução de emissão dos gases causadores do aquecimento global. Em discurso no Congresso, no mês passado, Bush surpreendeu ao estabelecer a meta de aumentar em mais de cinco vezes o uso do álcool no país até 2017 e reduzir em 20% o uso de gasolina. Lula poderia aproveitar a oportunidade para se mostrar como uma liderança pragmática e responsável do continente, em oposição ao histrionismo de Hugo Chávez.