Ainda chovia forte sobre os canaviais de Morro Agudo, região de Ribeirão Preto (SP), quando os rojões começaram a estourar em meio à lama e às pilhas de cana-de-açúcar. Era o sinal de que a colheita chegava ao fim e os cortadores, boa parte formada por migrantes nordestinos, estavam liberados para voltar para casa.
Antes de enfrentar a viagem de volta, normalmente longa e pouco confortável, ainda é preciso encarar a fila do acerto de contas. Foram cerca de nove meses de trabalho para os chamados “safristas” e as reclamações são inevitáveis. Pelo menos na região de Ribeirão Preto, a mais desenvolvida do país na produção de açúcar e álcool, eles costumam ter carteira assinada, condição nem sempre respeitada em outras áreas de plantio.
Em Morro Agudo, numa das fazendas da usina MB, os rojões estouraram em 7 de dezembro. A despedida foi acompanhada pela reportagem do Valor, que entre os dias 6 e 8 percorreu, nos arredores de Ribeirão, 531 quilômetros e visitou canaviais das cidades de Luiz Antônio, Jardinópolis, Morro Agudo, Barrinha e Sertãozinho, em áreas de quatro grandes usinas. No Centro-Sul, a colheita está na reta final e deve terminar no fim do mês. Até 1º de dezembro, mais de 93% do trabalho estava concluído.
“É uma vida dura”, resume Antônio Marcos Ferreira Gonçalves, 21 anos, cortador de cana há três safras. O discurso é comum nos canaviais, que só no Estado de São Paulo reúne cerca de 210 mil cortadores. O trabalho começa às 7 da manhã e vai até as 15h50, mas o dia começa ainda de madrugada, entre 3 e 4 horas, porque o transporte de ônibus até as plantações é demorado, e atrasos podem gerar prejuízo.
Antônio Marcos diz que tem o segundo grau completo, o que é raro nos canaviais, onde a maioria dos trabalhadores mal sabe ler e escrever o nome. A maioria deles mal sabe que o setor de açúcar e álcool é um dos que mais crescem no país atualmente. Confrontados com o fato de que o preço do açúcar está no mais alto nível em uma década na bolsa de Nova York, os cortadores respondem com indiferença.
Apesar do declarado grau de instrução, Antonio Marcos não foge à regra. Ele afirma que deixou para trás a vontade de estudar Direito para ganhar dinheiro em São Paulo. “Não me arrependo”.
Maior produtor e exportador de açúcar e álcool do mundo, o Brasil é também referência internacional em tecnologia ligada a esses produtores. Para os cortadores, isso pouco importa. Muitos deles nunca estiveram dentro de uma usina para conhecer o processo de industrialização.
Nos canaviais, dizem, a história é diferente. O clima quase sempre é inimigo. O almoço é entre as canas cortadas, a comida é fria, a água é pouca, não há tempo para encher a garrafa térmica. A companhia das cobras é comum. Poucos têm a sorte de contar com um banheiro químico para suas necessidades. Os buracos fazem as vezes de sanitários. Das quatro áreas de corte visitadas, apenas uma tinha banheiro químico instalado. Em contrapartida, todos os cortadores tinham equipamentos de proteção e uniformes para o corte.
Ar condicionado, água filtrada, cafezinho e computadores, só nas sedes das usinas, como em qualquer grande empresa do país. Ali instalados, os empresários do setor sucroalcooleiro afirmam que as condições de trabalho dos cortadores de cana já foram piores, mas concordam que hoje poderiam ser melhores. Isso na região de Ribeirão Preto, onde o tom das reclamações é bem mais ameno.
Postura diferente da dos plantadores, donos de terras com canaviais – que podem ou não empregar cortadores -, que há mais de um ano buscam um acordo definitivo com as usinas sobre a remuneração paga pela tonelada da cana entregue às usinas. Com o argumento de que não estão sendo beneficiados pelas altas de preços de açúcar e álcool, os plantadores conseguiram das usinas, no início de dezembro, a promessa de um reajuste de 6% para a próxima safra. Não há, porém, qualquer sinal de aumento para os cortadores de cana.
Para garantir uma remuneração melhor, boa parte desses trabalhadores tenta dobrar ou triplicar o volume diário de cana cortada. E aqui está a origem de boa parte dos problemas de saúde enfrentados por eles, que vêm sendo alvo inclusive de investigações do Ministério Público.
Elivan Silvestre de Souza, conhecido como Besourinho, é um bom exemplo dessa busca muitas vezes insalubre por produtividade. A alcunha, Souza ganhou dos colegas – cada cortador tem um apelido – e lhe foi atribuída por sua rapidez. Cortador de cana desde 1997, Besourinho é de Santa Rosa, no Piauí, e tem uma produtividade média por colheita de cana quase três vezes maior que a média apurada no Centro-Sul.
Ele corta por dia quase 20 toneladas, enquanto a média da região gira em torno de 7. Com isso, Besourinho ganha de R$ 1.200 a R$ 1.300 por mês e não deve voltar para Santa Rosa este ano. Ele quer comprar uma casa, de preferência em Morro Agudo.
Na região de Ribeirão Preto, o piso salarial dos cortadores é de R$ 410 mensais, segundo o Sindicato dos Empregados Rurais local. Em média, graças às cargas extras, a remuneração chega a entre R$ 600 a R$ 700. Besourinho, portanto, é exceção. Ele sabe, mas diz que tem medo que o excesso de trabalho afete sua saúde. O cortador pode não saber o que se passa na bolsa de Nova York, mas a notícia de que as mortes nos canaviais aumentaram veio mais rápido do que bote de cobra.
Desde 2004, 11 mortes de cortadores de cana na região de Ribeirão foram associadas pelo Ministério Público a precárias condições de trabalho. Três foram no ano passado, outras oito neste ano . Outros casos estão sendo investigados, diz a irmã Inês Facioli, coordenadora da equipe da Pastoral do Migrante de Guariba. A irmã Inês associa as mortes ao excesso de trabalho nos canaviais. “A maioria dos casos foi morte súbita”.
Os casos estão sendo apurados pelo Ministério Público e foram denunciados pela Pastoral de Guariba, e as denúncias já chegaram à Organização das Nações Unidas (ONU). A Delegação Regional do Trabalho de Ribeirão Preto também está acompanhando os processos, mas ainda não estabeleceu um vínculo definitivo entre as mortes e o excesso de trabalho. Para evitar tragédias, o Sindicato dos Empregados Rurais de Ribeirão Preto tenta que as usinas façam exames médicos mais detalhados nos safristas contratados para os canaviais.
Sob a garoa forte em Morro Agudo, os trabalhadores comemoram o fim do dia e da colheita de cana. Um espantalho, o “Coisa Chique”, serve bem à catarse depois de nove meses de canavial. Mas a “desforra” dura pouco. No ônibus, os cortadores se livram de seus podões (facões que cortam a cana) e bebem cachaça para comemorar. Aguardente da cana cortada por eles mesmos.