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Temos condições de competir com carros baratos’

A três dias do Dia do Automóvel e no ano em que a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) completa 50 anos, Rogélio Golfarb fala sobre a difícil missão de tornar a indústria automobilística nacional mais competitiva perante o resto do mundo. Engenheiro de formação, Golfarb também é diretor de Assuntos Corporativos e Comunicação da Ford Motor Company do Brasil e está no comando da Anfavea pela primeira vez. Apesar de seu mandato ser de 2004 a 2007, ele intervém nas decisões da associação desde a última gestão (2001-2004), quando foi vice-presidente da entidade. Golfarb fez uma análise exclusiva a A Tribuna sobre o mercado nacional neste tumultuado primeiro quadrimestre de 2006, falou sobre a ameaça das montadoras chinesas e como as empresas estão se preparando, abordou a questão do gás natural da Bolívia e traçou qual será o caminho que a indústria automotiva brasileira deverá tomar.

A Tribuna — Como o sr. define a importância da indústria automobilística no cenário atual do Brasil?

Rogélio Golfarb — É preciso olhar a importância econômica do automóvel. A indústria automotiva brasileira corresponde a cerca de 5% do Produto Interno Bruto (PIB). No setor industrial, essa participação sobe para 12%. Portanto, a indútria automobilística tem uma importância muito grande na economia. E quando você olha a questão de arrecadação de impostos, ela sobe muito mais. Essa indústria, por exemplo, é responsável por cerca de 20% do superávit comercial brasilero. Há, ainda, o ponto de vista dos empregos. São mais de 1,3 milhão de postos de trabalho. Enfim, tem um peso muito alto na economia e na sociedade.

AT — Há interesse de outros países investirem no Brasil em virtude dos avanços que o automóvel nacional tem?

Golfarb — Claro. A indústria automotiva brasileira é um foco de atração de investimentos. Nós temos estudos que mostram que, em uma defasagem de cerca de dois anos, os ciclos de investimentos automotivos são sucedidos por investimentos em outras áreas. Portanto, ela é uma sinalizadora de investimentos. Agora, exitem algumas especificidades. Uma delas é a capilaridade. Atualmente, ela está em mais de sete estados. Temos toda uma rede de suprimentos e de distribuidores, que são mais de 3.500 pelo Brasil e mais de 500 empresas de autopeças. Essa distribuição de riquezas faz com que a indústria automotiva brasileira se compare com poucos setores.

AT — E as tecnologias utilizadas?

Golfarb — A tecnologia que a indústria automotiva traz não fica só nela, ela termina se espalhando. Isso nós vimos na própria história do desenvolvimento indústrial. Todo país gostaría de ter uma indústria automotiva.

AT — Como o sr. analisa a situação do mercado automotivo nacional no primeiro quadrimestre de 2006?

Golfarb — Está dentro de nossas expectativas, mas não quer dizer que isso seja totalmente positivo. Tivemos uma grande conquista na questão da exportação, que hoje representa 33% da produção, e precisamos continuar trabalhando na questão da competitividade, pois é preciso ter mais volume para poder ser competitivo. Nós precisamos trabalhar para crescer ainda mais o mercado interno. É imprescindível exonerar custos. A indústria automotiva brasileira é a que tem a maior taxa de impostos do mundo, além das taxas de juros, que também são uma das maiores. Seja na questão de créditos, como fiscal ou tributária, temos muito espaço para trabalhar.

AT — Há poucos anos, o preço do carro popular era metade do que é atualmente. Hoje, o modelo zero-quilômetro mais acessível do mercado custa cerca de R$ 20 mil e, mesmo assim, cada vez mais, o volume de carros vendidos cresce. Por quê?

Golfarb — É preciso descontar várias coisas. Se excluirmos o índice da inflação do sistema veremos que o custo do carro subiu muito próximo à inflação nos últimos dez anos. E você vende mais automóveis hoje porque houve uma redução de impostos e uma melhoria, ou melhor, uma expansão do crédito. Está havendo uma redução da taxa de juros. E, claro, um fator preponderante, que é a subida da economia.

AT — O poder aquisitivo do consumidor aumentou?

Golfarb — O poder aquisitivo do consumidor, a massa salarial, tem aumentado. Mas não necessariamente no setor que compra automóvel. Por outro lado, o crédito melhorou, o que é uma grande força para vender carro.

AT — Os carros flex-fuel representaram 76,8% das vendas em abril, atingindo a marca de 95.596 unidades. Esses modelos devem chegar a que participação?

Golfarb — Não temos um número específico. Mas acredito que os modelos bicombustíveis vão crescer até ocupar todos os segmentos que excluem os automóveis de luxo e as picapes que utilizam o diesel. De resto, a tendência é de chegar a 100%.

AT — Mesmo com o trabalho de divulgação das montadoras, alguns proprietários de carros flex têm demonstrado uma certa frustração, principalmente com o aumento nos preços do álcool. O sr. acredita que esses rejustes frequentes possam prejudicar as vendas dos modelos flex?

Golfarb — Os números mostram que os aumentos no preço do álcool não afetaram as vendas. O que está acontecendo é que ainda estamos aprendendo a lidar com esse problema, que tem que ter solução. Por exemplo, os estoques reguladores são fundamentais. Mas o álcool é um combustível verde. Você o produz durante seis meses e o consome durante 12. Então, a entressafra faz parte.

AT — Como os mercados externos vêem a engenharia automotiva nacional no que diz respeito aos modelos bicombustíveis?

Golfarb — A questão do flex, que é o uso do etanol (álcool), virou uma questão de estado. O preço do barril acima de US$ 72, as instabilidades políticas de alguns países que são grandes produtores e a questão da substituição do óleo por um produto que não seja fóssil são alguns dos fatores que favorecem ainda mais o flex-fuel. Nos Estados Unidos, por exemplo, o presidente George W. Bush fez esse comentário. Outros países também estão avaliando o etanol como uma possibilidade de substituir a dependência do petróleo. Portanto, o Brasil deu um grande salto. Nós temos um modelo que funciona, estamos na frente de grandes países e temos uma indústria automobilística que, na verdade, criou o mercado de flex-fuel. É uma vantagem competitiva que nós devemos utilizar.

AT — Esse modelos já são exportados?

Golfarb — Ainda não, mas temos muitas procuras. O grande problema é que você depende da distribuição do álcool em outros países. Talvez ainda demore um pouco para nós começarmos a nos beneficiar com as exportações. Mas com certeza isso vai acontecer.

AT — Quando?

Golfarb — É difícil prever. Depende da infra-estrutura desses mercados.

AT — E como é a cotação dos veículos totalmente desenvolvidos e fabricados no Brasil lá fora? Eles são bem vistos?

Golfarb — Produto que não é bem visto não vende. O carro brasileiro tem modernidade, qualidade e preço competitivo, principalmente nas categorias de carros compactos. Na verdade, os segmentos de automóveis compactos, caminhões e ônibus são nichos em que o Brasil se firmou e é muito bem visto no exterior.

AT — Como estão as negociações em torno do acordo de mercado livre entre Brasil e Argentina?

Golfarb — Estamos no meio da negociação, que tem data para terminar: 30 de junho. Estamos exatamente discutindo questões de competitividade, não necessariamente só questões de restrição, de fluxo de produto. E esse tema de competitividade, no que depender da Anfavea, é o que deve nortear as negociações.

AT — Caso seja firmado um mercado livre que preencha os requisitos solicitados pela indústria nacional, o que mudaria para as montadoras e para o consumidor?

Golfarb — O que vai acontecer para o consumidor final vai depender muito de como é que o setor privado e os governos vão se alinhar para melhorar a competitividade, que também significa permitir um aumento dos mercados internos. No final da história, isso é um benefício para o consumidor.

AT — Dependendo do que for decidido entre os dois países, não pode ocorrer uma invasão de carros argentinos no Brasil?

Golfarb — Nenhum governo vai permitir a anulação da sua indústria automotiva. O objetivo desses acordos internacionais é criar o equilíbrio. Se não tiver equilíbrio é um acordo que terá que ser revisado em breve. Nós queremos um acordo durável e que seja justo para os dois lados.

AT — A tensão criada no Mercosul em virtude da situação da Bolívia pode afetar a indústria automobilística, seja em produção ou em venda, no que diz respeito aos carros movidos a Gás Natural Veicular (GNV)?

Golfarb — Todas indicações que nós temos é que não vai afetar. Que haverá suprimento de gás, que ele não será interrompido. Mas também estamos passando por uma negociação de preço. Vamos esperar como isso termina. É um pouco cedo para definirmos essa situação.

AT — Em relação aos modelos híbridos ou movidos a biodiesel? Há uma previsão de quando esses veículos, que já são realidade em vários países, chegarão ao País?

Golfarb — Nós temos a melhor tecnologia de todas, que é a flex. Os outros países é que estão perguntando quando o flex vai chegar lá. A gente está acostumado a olhar para o produto dos outros e achar que é melhor, mas dessa vez não é. A questão do biodiesel estamos trabalhando em cima.

AT — E essa ameaça das montadoras chinesas. Quando esses carros devem desembarcar no Brasil?

Golfarb — Espero que demorem muito. Mas o plano estratégico da China é se tornar um grande produtor mundial de automóveis. Não tem data para os veículos chegarem. As autopeças já estão no mercado de reposição, as motocicletas também já estão chegando. Então, os automóveis, fatalmente, também vão chegar. Por isso, insisto que devemos trabalhar a agenda competitiva da indústria brasileira.

AT — O Brasil está preparado para competir com carros mais baratos?

Golfarb — Acho que nós estamos preparados para competir, tanto em qualidade quanto em inovação. Condições nós temos. Agora, não podemos ser passivos e achar que as coisas vão se acomodar sozinhas. Temos que agir à frente, temos que ter um plano e entender que a competição não pára nunca. Essa será a grande agenda da Anfavea para este ano.

AT — O mercado nacional tem espaço para mais montadoras? Tem consumidor para isso?

Golfarb — O Brasil ainda tem um número muito pequeno de compradores de carros, comparado com o tamanho de sua população. Na medida que a situação melhora, nós teremos mais consumidores. É claro que a competição também é boa para o consumidor. Não podemos esquecer da nossa indústria aqui, no mercado interno, não podemos viver apenas de importação.