Mercado

Rodada de Doha será tema principal da visita de Chirac

A negociação da Rodada Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC) estará no centro das conversas hoje, entre os presidentes da França, Jacques Chirac, e Luiz Inácio Lula da Silva, no Palácio da Alvorada. Mesmo com a assinatura de acordos de cooperação e as declarações de compromisso com o aprofundamento das relações bilaterais, deverá sobressair o embate entre a resistência da França de Chirac a uma oferta razoável da União Européia de abertura do comércio agrícola e a ofensiva de Lula nessa mesma direção.

O desafio maior de Lula será convencer Chirac, durante essa sua segunda visita de Estado ao Brasil, a concordar com a realização de um encontro de líderes mundiais para tratar da Rodada Doha à margem da próxima reunião do G-8 (as sete economias mais ricas do mundo, mais a Rússia), marcada para o dia 15 de julho em São Petersburgo. O objetivo de Lula com esse evento seria induzir os países mais influentes na OMC a assumirem compromissos políticos de pôr sobre a mesa de negociações as propostas necessárias para que a Rodada seja concluída até o final deste ano.

Sem a França e os Estados Unidos, esse encontro paralelo ao G-8 seria inútil. Atualmente, o país presidido por Chirac há 11 anos é o principal foco de resistência a qualquer movimento da Europa em relação à abertura de seu mercado agrícola – um dos mais fechados do mundo. Sem essa proposta de liberalização agrícola sobre a mesa, Washington não aprofundará sua oferta de redução dos subsídios concedidos a seus agricultores. Como resposta, os países em desenvolvimento que integram o G-20, grupo liderado por Índia e Brasil, não reformularão suas propostas sobre a abertura dos seus setores industriais e de serviços. Resultado óbvio dessa equação: fracasso da Rodada.

No dia 12, em Viena, Chirac comentou com os primeiros-ministros da Espanha, José Luís Rodríguez Zapatero, e da Alemanha, Angela Merkel, que havia chegado o momento de o Brasil fazer seus movimentos em matéria de abertura do mercado industrial e de serviços.

Itamaraty acenou com mais abertura na área industrial

De fato, o Itamaraty acenou com uma flexibilização da oferta na área industrial, durante conversa ocorrida também em Viena, entre o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, e o comissário de Comércio da União Européia, o britânico Peter Mandelson.

Amorim, entretanto, ressaltou uma vez mais que, nessa Rodada da OMC, os sacrifícios devem ser proporcionais ao grau de desenvolvimento dos 148 países envolvidos. Mas os benefícios devem ser inversamente proporcionais. Ou seja, os mais ricos devem ceder mais nos temas agrícolas. Os mais pobres, devem ceder menos em indústria e serviços. Mas esse tipo de apelo não sensibiliza a França. Ainda em Viena, na Cimeira União Européia-América Latina, Chirac defendeu em seu discurso que a Europa “apresentou o máximo de esforços, em particular a respeito de agricultura, para se chegar a um acordo”.

“Chegou a hora para os grandes países emergentes, particularmente os latino-americanos, fazerem um movimento com relação aos principais temas da negociação: tarifas industriais, serviços e propriedade intelectual”, cobrou Chirac. Oficialmente, o Itamaraty celebra a vinda de Chirac como uma retribuição à visita de Lula a Paris em julho do ano passado e como uma oportunidade para “intensificar o relacionamento bilateral, elevado ao patamar de parceria estratégica”. Em especial, as parcerias na área científico-tecnológica – o desenvolvimento de um mercado internacional para o etanol e a cooperação para a produção de biocombustíveis em países da África e do Caribe – e na criação da Central Internacional de Medicamentos, que facilitaria a compra de remédios contra a AIDS, a malária e a tuberculose por essas nações.

Do ponto de vista político, França e Brasil são aliados de primeira hora em dois temas estratégicos – a reforma das Nações Unidas e a campanha mundial de combate à fome. Chirac foi um primeiros estadistas a apoiar a ambição do governo Lula de incluir o Brasil entre os membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU e sua proposta de criação de fundo contra a pobreza, alimentado por uma tarifa a ser cobrada sobre vôos internacionais.

Lula ao Le Monde: “Jamais ostentei etiqueta de esquerda”

NAPOLEÃO SABÓIA

Correspondente do Jornal do Commercio, em Paris

Identificando-se como torneiro mecânico e militante de um partido que tem como engajamento fundamental a “construção de uma sociedade mais justa”, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em entrevista ao jornal Le Monde, publicada ontem, proclama: “Jamais ostentei a etiqueta de esquerda” e considera “superados conceitos como os de anti-imperalismo e de revolução”.

Guindado à condição de chefe de Estado e convertido ao credo do pragmatismo, a revolução de que ele fala agora ao jornal francês leva novo nome: “revolução energética”, o que contraria a imagem ideológica histórica que os europeus, durante mais de duas décadas, a partir da luta pela redemocratização do Pais, sempre tiveram do antigo líder sindical brasileiro.

Após a revolução do etanol, citada por Lula, o presidente ressalta, esbanjando otimismo: “Iremos fazer a revolução do biodiesel e com a auto-suficiência já atingida em petróleo, o Brasil será a maior potência energética do planeta”.

No quadro da ampla cobertura que a imprensa francesa realiza a propósito da visita do presidente Jacques Chirac a Brasília, a entrevista de página inteira oferece a visão de um Lula extremamente moderado nas suas posições. “Não misturemos a ideologia com as novas relações comerciais”, disse ele.

Assim, o presidente brasileiro prefere a negociação à confrontação no caso da Bolívia de Evo Morales e relativiza as divergências da Venezuela de Hugo Chavez com os Estados Unidos, sob o argumento de que os venezuelanos vendem 85% de seu petróleo aos americanos.

Com o mesmo tom apaziguador, Lula rejeita a hipótese de a integração latino-americana se efetuar em oposição aos Estados Unidos. Também não acha que tal projeto seja incompatível com a celebração de acordos comerciais bilaterais. Aponta, em seguida, o Brasil como referência dessa capacidade de se conciliar diferentes interesses no contexto da integração.

“Paralelamente a uma integração reforçada com a América do Sul e uma aproximação com a África, China, Índia e Oriente Médio, nossos intercâmbios comerciais com os Estados Unidos e a União Européia aumentaram”, disse Lula. “Não preciso brigar com ninguém para avançar no sentido da integração da América Latina. Relações mais numerosas e heterogêneas consolidam a democracia no mundo”, completou o presidente.

Presidente volta a pregar educação contra violência

Sobre as violências ocorridas em São Paulo, Lula volta a preconizar a educação como a alternativa para o combate à marginalidade dos jovens. Ao mesmo tempo, entretanto, faz a resignada constatação de que “isso não basta para acabar com o crime organizado, que é sofisticado, porque tem ramificações internacionais, assim como na policia, no sistema judiciário, na empresa e nas camadas mais pobres. É uma indústria mais difícil de ser afrontada do que a criminalidade ordinária”.

Depois de referir-se às medidas tomadas para o saneamento das finanças, Lula afirma que, “mesmo com uma política orçamentaria rigorosa, pode-se realizar uma política social forte”. Ele cita, entre outros, os programas da Bolsa Escola e o aumento do salário-minimo como formas progressivas de distribuição da renda. O dirigente brasileiro conclui a entrevista com o palpite de que “o Brasil tem boas chances de ser de novo campeão do mundo”».

Em duas reportagens na mesma edição, o Le Monde trata da situação política e da conjuntura econômica. Na primeira, faz alusões aos escândalos que acabaram convertendo “em frangalhos a soberba máquina política que era o famoso PT”. Na segunda, destaca a preocupação do empresariado nacional com a valorização do real e as incidências negativas que o fato acarreta sobre suas exportações.