Mercado

Retratos de George Washington

Uma de nossas principais doenças é provocada pelo vírus mercantilista. A doença, que já nos deixou em estado quase terminal, conseguiu ser parcialmente debelada. Mas o vírus continua vivo e fazendo estragos. O mercantilismo tem suas raízes conceituais no século XVII. Seu princípio básico é que um país prospera através da produção e da exportação. Nas palavras de um de seus ideólogos em 1685, “exportação é um ganho, mas toda importação é uma perda” (1). O corolário disto é um viés contra o comércio internacional e a idéia de que o governo deveria intervir na economia para proteger os produtores domésticos e restringir as importações, tendo como objetivo a manutenção de um elevado superávit e a acu- mulação de reservas.

Este conceito foi demolido pela teoria econômica a partir de Adam Smith. A não ser em casos excepcionais bem conhecidos e analisados – e eles são, como o nome diz, exceções – o que a literatura especializada mostra é que, na esmagadora maioria dos casos, comércio internacional é bom para um país e quanto mais livre este for, maior será o benefício.

Apesar de derrotado intelectualmente, o mercantilismo continua entranhado no mundo real. Parte porque seus conceitos parecem, a um leigo em economia, simples e lógicos ao fazerem uma falsa analogia entre um país e uma empresa. Não seriam as exportações “receita” de um país e as importações um “custo”, o superávit comercial sendo equivalente a um “lucro”? Parte por que, para um governante, a noção de intervenção e controle, com o objetivo de traçar uma estratégia nacional visando ganhar uma pseudo-guerra econômica entre países, é atraente, apesar de que, no mundo real, a competição seja feita entre empresas e não entre países. Mas a razão principal é que o receituário mercantilista – tarifas, proteção e subsídios – gera fortes ganhos a uma parcela expressiva do empresariado local. Em um caso clássico de benefícios concentrados e custos dispersos, estes grupos influenciam e pressionam os governantes, juntando a fome com a vontade de comer. O resultado são políticas de comércio internacional e uma forma de pensar, refletida na mídia, enviesadas a favor de alguns produtores e contra o consumidor.

Uma manifestação recente deste viés conceitual é a afirmação falaciosa de que o aumento das importações foi responsável por uma redução do PIB (2). Quer dizer que o PIB brasileiro seria aumentado em US$ 90 bilhões caso nada fosse importado do exterior? Por trás daquela afirmação está a idéia de que o incremento de importações poderia, ou deveria, ter sido atendido por um aumento da produção doméstica, expandindo o PIB. Como, pelo livre funcionamento do mercado, isto não ocorreu, fica implícita a recomendação de intervenção governamental, por exemplo forçando uma desvalorização do câmbio, não importando os custos desta medida para a população, para o resto da economia e para o próprio desempenho do PIB.

O mercantilismo também está implícito em nossa estratégia comercial. Uma das principais variáveis analisadas na discussão de um novo acordo bilateral é o potencial acréscimo de saldo comercial que ele geraria. Por quê? Importar de um novo fornecedor que possui custos efetivos mais baixos que os atuais, mas que se encontrava alijado da competição por um tratamento tarifário desfavorável, não traz benefícios ao país? Desde que o incremento de importações não seja resultado de desvios indevidos de comércio, por que ele não seria benéfico? Que importância tem o saldo ou o déficit com um parceiro específico?

Hoje, o nome do jogo é eficiência

Muitos atribuem o sucesso econômico dos países asiáticos ao mercantilismo. Pelo contrário. O componente mercantilista, que existe, mas não é dominante, só atrapalha. Ao início dos anos 90, o economista Merton Miller visitou o Brasil. Nessa época, os Estados Unidos estavam mantendo forte déficit comercial com o Japão e muitos previam o declínio inexorável da economia americana e a contínua ascensão japonesa. Questionado sobre o assunto ele respondeu: “Os japoneses trabalham duro para nos vender automóveis e aparelhos eletrônicos de boa qualidade a preços baixos e o que damos a eles em troca? Retratos de George Washington. E o que acontecerá se eles quiserem usar esses retratos? Seu valor irá depreciar, perdendo poder de compra. Para nós é um grande negócio.”

De fato. Logo em seguida o Japão entrou em grave crise econômica, da qual ainda não se recuperou totalmente e a economia americana continuou crescendo. Hoje a história se repete com a China, cuja economia, aliás, é extremamente aberta ao comércio. Para os americanos, adquirir produtos chineses a preços mais baixos que os produzidos localmente continua sendo um grande negócio. Mas faz sentido para a China continuar acumulando reservas, que já ultrapassam US$ 1 trilhão, a um elevado custo alternativo, ao invés de flutuar o yuan?

A falácia mercantilista é que os interesses de um grupo de produtores não correspondem necessariamente aos do país, embora apresentados desta forma. O bem-estar de um país é medido, sob o ponto de vista econômico, pela renda da população, que não é necessariamente igual à produção. E, no que se refere à produção, o que é ruim para uns é bom para outros. Por que o Brasil deveria produzir mais eletrônicos ao invés de mais etanol? A taxa de câmbio que beneficia a indústria têxtil e a de calçados prejudica, além dos consumidores, a indústria petroquímica que importa nafta. Por que interferir no mercado em prol de uma ou de outra ao invés de deixar o câmbio flutuar livremente? Por que ignorar o consumidor?

O interesse do Brasil está em manter um ambiente competitivo, com regras claras e preços livres, que induzam a melhor alocação de recursos possível. Hoje, o nome do jogo é eficiência, para o produtor, para o consumidor e, principalmente, para o governo. O receituário mercantilista está na contramão da eficiência.

1) Douglas Irwin, Against the Tide, Princeton U. Press, 1996, p.33.

2) Para uma refutação mais completa desta proposição, ver entrevista de Affonso Pastore (Valor, 5/2/07).

Claudio Haddad, diretor-presidente do Ibmec São Paulo e presidente do Conselho da Veris Educacional S.A., escreve, quinzenalmente, às quintas-feiras [email protected]