Mercado

Réquiem in pace, ALCA

Imagine essas regras para um jogo de futebol: o jogo termina ao quinto gol, mas começa com 6 x 0 para o meu time. Gol do meu time vale dois, o seu time precisa fazer dois para valer um. Goleiro que defender pênalti do meu time será expulso, juiz que não marcar pênalti a meu favor também. Se o resultado não for favorável ao meu time, anule-se a peleja e compita-se novamente até que o meu time vença. Em compensação, a renda do jogo reverterá integralmente para o meu time. Regra final: você tem que aceitar as regras!

Anti-liberalismo comercial

Não gostou? Noves fora o estereotipo, é o que os EUA estão propondo. Parece que Mr. Bush estava atento aos discursos de FHC em relação à ALCA, em especial que as negociações somente seriam justas se tivessem duas vias, contemplando uma abertura real do mercado americano à competição. Bush ouviu e escreveu justamente o oposto: o Fast Track, ou Trade Promotion Authority Act, recém aprovado pelo Congresso dos EUA, permite ao Governo negociar a criação da ALCA, desde que o protecionismo, os subsídios agrícolas e as regras anti-dumping sejam “imexíveis”; que não haja transferência de tecnologia americana aos demais países; impõe pesadas restrições disfarçadas de cláusulas ambientais e trabalhistas; e exige equiparação de capital nacional ou estrangeiro.

Lição não aprendida

Recentemente comentei a dificuldade para os americanos entenderem porque despertam ódio tão intenso ao redor do mundo. Uma das explicações está em seu comportamento comercial. Seu princípio de negociação é “vinde a nós o vosso reino e seja feita a minha vontade”, nunca chega a parte do “nos dai hoje”. Trocando em miúdos, o Governo americano exige que o mercado dos demais países seja aberto e livre para os produtos ianques, porém não concede reciprocidade. Para aqueles produtos onde possui vantagem competitiva, as alíquotas de importação são baixas, para exigir contrapartida do concorrente. Para os produtos onde não compete com vantagens – caso típico da agropecuária – os EUA recorrem ao protecionismo deslavado, despejando dezenas de bilhões de dólares para subsidiar uma agricultura ineficiente. Se o produto estrangeiro chega ao mercado americano mais barato, cotas e sobretaxas são aplicadas. Se, mesmo assim continua competitivo last but not least, apela-se à legislação anti-dumping.

Lastimável

Acho que o mundo inteiro perde com a decisão americana, independente do desfecho. No cenário “Coerência”, em que o Governo brasileiro mantém o compromisso expresso nos discursos sobre justiça comercial, não haverá negociação possível, a ALCA é um ente natimorto e, de tão triste lembrança sequer merecerá o RIP do título da coluna. No cenário “Colonialismo”, caso o nosso Governo ceda à pressão avassaladora que virá dos lobies e do Governo americano, estará entregando de bandeja o futuro não apenas do Brasil, mas da América Latina e dando um recado ao mundo de que é melhor conformar-se com o status quo colonialista imposto pelas grandes nações. Falo especificamente do Governo brasileiro, porque 80% do PIB ao sul do Rio Grande é composto pelo México, Argentina e Brasil. O México já pertence ao NAFTA, a Argentina não está em condições de negociar nada com ninguém. Para onde o Brasil for, a ALCA irá atrás. Inclusive para o brejo!

“Negociação”

Senhor Presidente da República, determine que a negociação com a ALCA seja dura, conforme tem expresso em seus discursos. Tão dura quanto a “negociação” que o Governo tem feito com o seqüestro de salário via Imposto de Renda, ao não corrigir os 36% de inflação na tabela do IR, que tanto penaliza os trabalhadores. Ou com o famigerado imposto compulsório de compra de veículos, de 1984. Quem pagou os 30% adicionais em 1994 recebe, hoje, 50% da dívida não corrigida, ou menos de 20% do que seria o valor corrigido pela caderneta de poupança. O empréstimo compulsório de um carro médio da época equivalia ao preço de um carro pequeno. Hoje, a devolução do Governo representa 30% do valor de um carro 1.0. E, sobre essa esmola, há que pagar honorários advocatícios, IR sobre o prejuízo (!) e INSS sobre serviço não prestado (!). Em contraste, quem tomou os mesmos R$10.000,00 emprestados em um banco em 1994 (dez anos depois) deve hoje R$13.900.259,00, de acordo com Élio Gaspari (FSP, 9/12). Então, Senhor Presidente, “negocie” com o Tio Sam como tem “negociado” conosco. O povo brasileiro agradecerá as oportunidades de emprego e renda.

Décio Luiz Gazzoni – engenheiro agrônomo – Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) e diretor técnico da Federação das Associações de Engenheiros Agrônomos, diretor da Agrotrends Ltda. e Consultor Internacional do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID – Washington, EUA)