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Repasses criam paraísos administrativos

Marta Watanabe e Raquel Salgado

O prefeito de Borá, cidade do interior paulista a 500 quilômetros da capital, recebe um salário mensal de R$ 7,5 mil. Junto com os nove vereadores da Câmara Municipal – que têm salários de R$ 750 – ele consome nada menos do que 70% da arrecadação tributária própria do município, hoje com pouco mais de 800 habitantes. Gilberto Kassab, prefeito de São Paulo, ganha R$ 7,23 mil mensais para comandar uma cidade com 11 milhões de habitantes e arrecadação em torno de R$ 4 bilhões somente em Imposto Sobre Serviços (ISS).

“Aqui é uma cidade pobre, mas o padrão de vida é bom. Eu invisto na infra-estrutura”, diz o prefeito de Borá, Nelson Celestino Teixeira, 65 anos, filiado ao PSDB. Nascido em Paracatu, no Paraná, mudou para Borá para administrar uma fazenda de café até chegar, dez anos depois, à cadeira de prefeito. Gostou tanto da experiência que, dos últimos 24 anos, passou 15 como chefe do executivo municipal. Com formação até a quarta série do ensino fundamental, cumpre o quarto mandato após obter, nas eleições de 2004, 14 votos a mais que seu adversário.

Seja para custear o salário do prefeito ou para investir em infra-estrutura, a destinação de recursos em Borá só é viável em função das transferências obrigatórias que recebe da União e do Estado. Principalmente recursos do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), que tornam Borá uma espécie de paraíso da administração pública, na qual praticamente a totalidade das receitas está garantida sem que seja necessário qualquer esforço de arrecadação própria ou de fiscalização de tributos.

Com 823 habitantes, Borá é o município mais rico do ponto de vista das transferências federais, com o maior FPM per capita do país, segundo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), de autoria dos pesquisadores Carlos Eduardo Gasparini e Rogério Boueri Miranda. São R$ 2.786 por habitante, quase 20 vezes superior à média nacional.

Encabeçada por Borá, a lista do Ipea mostra uma liderança considerada pitoresca. “Os municípios com maior renda per capita têm, logicamente, populações pequenas. O que surpreende é que a maioria está nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste e não no Norte e Nordeste”, diz Boueri.

O pesquisador leva em consideração que o FPM foi criado na década de 60 com o objetivo de tentar reduzir as desigualdades econômicas entre as regiões. Mas, das 20 cidades com maior FPM per capita, apenas quatro são das regiões Norte e Nordeste.

A distorção na distribuição do fundo per capita se dá porque, fora as capitais, que obedecem a uma regra própria, o FPM é dividido entre as prefeituras do interior conforme a sua população. Primeiro a divisão é feita por Estado e depois os recursos de cada unidade federativa são rateados entre as prefeituras. Só que nessa distribuição a Constituição Federal garante participação mínima de 0,6% do Fundo aos municípios de até 10.188 habitantes.

O objetivo da participação mínima, explica Amir Khair, especialista em contas públicas, foi garantir uma distribuição de renda para prefeituras sem muita estrutura. Mas isso permite que um município com 10 mil habitantes numa determinada unidade federativa receba o mesmo 0,6% que um município com mil habitantes no mesmo Estado, por exemplo.

Resultado: o FPM per capita anual de Borá – R$ 2.786 – é muito superior aos R$ 144,83 da média nacional. Na região Sudeste, o valor é de R$ 106,32. A capital paulista recebe R$ 7,08 por habitante. Boueri lembra que no agregado por região, porém, o comportamento do FPM segue a lógica do fundo. O Nordeste é a região que apresenta o maior fundo per capita, com R$ 184,47.

Para ele, a concentração dos maiores FPM per capita no Sul e Sudeste – na classificação dos dez primeiros municípios com a maior relação fundo por habitante, seis são dessas duas regiões – não acontece por acaso. Para Boueri, provavelmente houve uma tendência maior de desmembramento de municípios nesses locais, o que deu origem a cidades com menos habitantes. A cidade de Borá, por exemplo, foi emancipada de Paraguaçú Paulista justamente no ano de criação do FPM, 1965.

Nos Estados nordestinos, onde a economia foi baseada na monocultura e as populações são mais pulverizadas, pode ter havido dificuldade maior para organização de movimentos para emancipação de municípios. “Situação oposta à do Sudeste, que teve ocupação com diversidade maior e mais concentrada”, diz Boueri.

A questão, dizem os especialistas, é conhecer os efeitos da distorção na formação dos paraísos públicos com alto FPM per capita. Apesar de ter arrecadado quase R$ 4 milhões no ano passado – incluindo a fatia do FPM e o recolhimento de tributos – Borá está longe de ser um paraíso para os seus moradores. Na cidade, 34 famílias recebem o Bolsa Família, programa de transferência de renda do governo federal.

Roseli Pereira Batista faz parte desse percentual. Ela está desempregada desde que chegou a Borá, há 14 anos. A renda da família, que além dela e do marido, Divonir, conta com duas filhas, chega a R$ 500 em alguns meses. Mas como Divonir trabalha como bituqueiro, catando o resto de cana em uma usina, fica sem emprego fixo na entressafra. A renda é incrementada com R$ 80 do Bolsa Família. A maior parte do rendimento é consumida pelo pagamento de aluguel, de R$ 200 mensais. Desde que uma nova usina de açúcar e álcool se instalou na cidade, em 2002, a maior procura por imóveis fez o preço do aluguel subir. Mas em breve Roseli trocará o aluguel pela prestação da casa própria.

Ela e sua amiga Tânia são algumas das sorteadas pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional Urbano (CDHU) e agora trabalham duas vezes por semana, das 7h30 às 17 horas, na construção de 100 casas populares. No fim da obra, vão receber uma casa com dois quartos, sala e cozinha.

Assim como Roseli, Tânia Maria dos Santos Conceição também está desempregada. Apesar de ser um município independente, Borá não tem uma economia dinâmica o suficiente para suprir a demanda por trabalho, principalmente para as mulheres. A maior parte das ocupações oferecidas na região é para a lavoura ou exige esforço físico. De vez em quando, Tânia faz bicos como diarista em Paraguaçú Paulista. Não ganha mais do que R$ 15 por faxina, mesmo valor que recebe todo mês do Bolsa Família.

Mas as moradoras não reclamam. “O prefeito é bom, ele ajuda a gente. Se preciso de um remédio, por exemplo, é só pedir que ele sempre dá”, conta Roseli. Além disso, ela diz que a escola na cidade é boa. Em Borá, a prefeitura oferece vagas do ensino infantil ao último ano do médio. “Assim as crianças não precisam sair da cidade para estudar”, ressalta o prefeito.

Borá tem um posto de saúde no qual cinco médicos se revezam. O pediatra atende uma vez por semana, como conta Nilsa Helena do Amaral. Sua filha de 13 anos estava há uma semana sem tomar um remédio para o tratamento de depressão. “O doutor está em férias e não tem quem dê a receita”, explica. Além das obras da CDHU, a outra construção de Borá é um mini pronto-socorro que atenderá pequenas emergências já neste ano, segundo o prefeito.

Apesar da arrecadação tributária do município ainda ser pequena, ela cresceu a taxas vigorosas nos últimos anos. Em 2006, a expansão foi de 10%. Em 2005, o município arrecadou 134% a mais do que o ano anterior. Em 2004, outro forte crescimento: 105,5%. José Roque Bregolato, assessor de contabilidade da prefeitura, explica que esse movimento foi impulsionado pela maior arrecadação de ISS. A partir de 2002, quando a Usina Ibéria, do Grupo Toledo, deu início às atividades na região, a verba vinda desse tributo deu um salto.

Atrelada à usina, o crescimento de arrecadação, porém, não deve ter continuidade. “Foi um movimento mais pontual. Daqui para frente acredito que a tendência seja de estabilidade em torno dos R$ 200 mil anuais”, diz Bregolato. Com um FPM de quase R$ 3 milhões anuais, não é preciso mesmo pensar em arrecadar mais. O prefeito confirma: “Não tenho dívidas. Aqui sobra dinheiro”, diz.

A cerca de 200 quilômetros de Borá, no noroeste de São Paulo, Nova Castilho está entre os últimos municípios instalados no Estado. O município conseguiu formalizar sua emancipação em 1995, às vésperas da aprovação de uma emenda constitucional que limitou o surgimento de novas cidades. A emenda ainda precisa de regulamentação, mas restringiu a emancipação ao estabelecer um estudo prévio de viabilidade municipal e uma consulta plebiscitária não só à população do candidato a novo município como também a todos os habitantes da cidade que deve sofrer o desmembramento.

Mais de dez anos após sua independência formal, Nova Castilho não possui hospital porque, segundo o prefeito, “não tem população que justifique o custo alto de manutenção” e procura um investidor interessado em instalar uma empresa na cidade. A administração municipal é o principal empregador. Trabalham na prefeitura 137 dos seus cerca de 1.030 habitantes. “Estamos organizando um distrito industrial, mas ainda não temos infra-estrutura pronta”, diz o prefeito Roberto Lopes (PSDB).

Com um FPM de R$ 2,97 milhões, muito superior à arrecadação própria de R$ 137,19 mil em 2006, o município tem recursos suficientes para fornecer transporte gratuito a 35 alunos que freqüentam faculdades em cidades vizinhas, já que não há ensino superior em Nova Castilho.

A disponibilidade de recursos da prefeitura, porém, não elimina a necessidade de atendimento da população por programas sociais sustentados por outras esferas administrativas. O município possui 330 alunos matriculados do pré ao ensino médio. Mais de 10% deles são alvo de programas sociais públicos. O Ação Jovem, do Estado, que concede benefício de R$ 60 para jovens entre 15 e 24 anos que estão fora da escola formal, contempla 20 alunos. Outros 22 alunos estão no Bolsa-Escola, da União.

Lopes diz que a preocupação com a questão econômico-social vem aumentando à medida que a cultura canavieira avança. Segundo Lopes, a cana ocupa hoje metade da área arrendada para plantio, o que teria contribuído para reduzir ainda mais a atividade econômica da cidade. O prefeito explica que a cana se alastrou nos últimos três anos e ocupa menos mão-de-obra que outras culturas, como grãos, algodão e laranja, além da criação de gado leiteiro.

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