O pãozinho francês está sob ataque. Projeto de lei quer tornar obrigatória a adição de 10% de fécula de mandioca à farinha de trigo. A votação da matéria provoca inusitada disputa entre as duas cadeias produtivas. Quem vence?
Autor do polêmico projeto, o atual presidente da Câmara dos Deputados, Aldo Rebelo, afirma que a mandioca “nunca teve o apoio de ninguém, ao contrário do café e da cana-de-açúcar”. Na prática, propõe criar reserva de mercado para os produtores.
O Brasil é o segundo maior produtor mundial, com 27 milhões de toneladas/ano da raiz. Uma montanha. Perde apenas para a Nigéria. Esse enorme volume, todavia, se reduz na extração do amido, também conhecido como fécula ou polvilho.
As fecularias nacionais extraem 500 mil toneladas/ano do branco e fino amido de mandioca. Caso a mistura se tornasse obrigatória, essa quantidade teria de dobrar. Argumenta-se que ajudaria a agricultura familiar, criando 100 mil empregos no campo. Vai saber.
Ao mesmo tempo, a adição reduziria, em parte, a dependência das importações. Só em 2006 o Brasil deve importar 60% dos 10 milhões de toneladas de trigo que consumirá, ao custo de US$ 800 milhões. Não é pouco.
Faz bem valorizar o produto nacional. A mandioca é produto caboclo, alimento básico desde os indígenas. O trigo, não. Campeão de cultivo no mundo, o cereal chegou aqui trazido pelos colonizadores portugueses. Após a 2ª Guerra Mundial, recebeu forte empurrão dos norte-americanos, interessados na sua venda. Subsidiado, penetrou no hábito alimentar do brasileiro, deslocando gêneros tradicionais.
A presente polêmica lembra discussão havida na década de 1970, quando da formulação do Proálcool. De forma semelhante, grupos defendiam a produção de álcool a partir da fermentação da mandioca, contra a cana-de-açúcar. O argumento básico era de que o setor sucroalcooleiro estava dominado por grandes capitais, enquanto a mandioca era popular. Não colou.
Há três anos ressurgiu estranhamente semelhante questão, durante os estudos sobre o biodiesel. Ponderações de natureza social, híbridas de reforma agrária com pobreza nordestina, foram utilizadas para defender a mamona contra a soja. Esta, caracterizada como própria de grandes fazendeiros, perdeu a parada. Deu em nada.
É verdade que a mandioca se cultiva, principalmente, entre pequenos agricultores espalhados pelo País. Segundo os dados do IBGE, menos de 1% da raiz advém de grandes produtores rurais. O trigo, entretanto, também se caracteriza como cultura democrática. Apenas 4,2% do cereal pertence aos grandes cultivos.
A maior diferença não reside no tamanho, mas na qualificação. O aipim ainda representa, até hoje, cultura de subsistência para grande parcela dos agricultores, especialmente no Nordeste e no Norte. O grande consumo da macaxeira se dá na forma de farinha e polvilho. Se for mansa, basta cozinhar e comer.
Já o trigo configura cultura especializada, fortemente vinculada ao mercado e integrada aos moinhos, onde se tritura o grão. Sua distribuição privilegia o sul do País, especialmente os Estados do Rio Grande do Sul e Paraná, pois exige clima frio para bem vingar. Recentemente, graças às pesquisas da Embrapa, surgiram variedades adaptadas ao cerrado, com excelente performance.
Nessa contenda, primeiro importa a qualidade nutricional. A mistura da fécula de mandioca na farinha de trigo pouco compromete o alimento final. Altera um pouco o gosto, mas pode melhorar a conservação de pães e pizzas. Há um senão: o trigo apresenta cinco vezes mais proteína que a mandioca. Quer dizer, turbinado com fécula, o pãozinho fica mais energético.
Isso não significa, necessariamente, piora. Pão ruim, isso sim, é aquele fabricado com bromato de potássio, um sal insosso, cancerígeno, que aumenta o volume da massa. É fácil perceber sua utilização. O pãozinho fica vistoso, fofo. Na mordida, esfarela fácil. Uma porcaria.
Proibido desde 2001, com a Lei 10.273, esse artifício químico continua sendo, fraudulentamente, utilizado na maioria das padarias pelo Brasil afora. Os sistemas de fiscalização de saúde não conseguem, ou não desejam, eliminar a prática nociva. Isso, sim, é assunto grave, que macula a turma do trigo.
A proposta da adição forçosa da mandioca no trigo parece boa idéia. Mas é antiga. Na sociedade passada, essas coisas impositivas funcionavam. Cabia ao governo decidir pelo cidadão. Mas agora, tudo sabido, globalizado, quem garante que dará certo? Suponha que o Congresso aprove. Quem vai fiscalizar a emissão de notas fiscais frias?
O pecado capital dos mandioqueiros reside nisto, em defender, na marra, a mistura pretendida. Seria mais conveniente trabalhar o marketing do produto, pois o mercado aceita. Em 2002, a oferta de trigo esteve restrita, elevando o seu preço. Mais barata, a fécula de mandioca acabou sendo adquirida em grandes quantidades pela indústria. Os consumidores nem sentiram a diferença.
Mais importa o gosto do consumidor que a obrigação legal. E depende da tendência do mercado. Veja o curioso exemplo do pão de queijo. Sem ninguém obrigar a nada, nem mesmo perceber direito, o delicioso quitute mineiro se expandiu pelo País afora. Com a ajuda da tecnologia, que facilitou o processo, já se consomem, mensalmente, 6 mil toneladas de massa crua. Mistura de queijo ralado com polvilho azedo. De mandioca!
Ora, o mesmo poderia, quem sabe, acontecer com a tapioca. Com recheio de coco é insuperável. Mas ninguém é obrigado a gostar.
Xico Graziano, agrônomo, foi presidente do Incra (1995) e secretário da Agricultura de São Paulo (1996-98). E-mail: [email protected] Site: www.xicograziano.com.br