Mercado

Os preços dos combustíveis e o abastecimento do etanol

As recentes e preocupantes dificuldades no abastecimento de combustíveis líquidos para veículos leves no Brasil e o forte aumento nos preços do etanol e da gasolina para os consumidores deixam lições que não podem ser ignoradas.

A chegada da colheita da nova safra de cana-de-açúcar combinada ao fim da entressafra em abril e o início de funcionamento das destilarias permitiram a retomada da produção de álcool etílico (etanol) e estão trazendo alívio para a presente situação de escassez. Em breve, os preços dos combustíveis recuarão para níveis adequados. Entretanto, não existe motivo para otimismo pois a regularização da oferta e dos preços neste momento está muito longe de representar a solução definitiva para a crise, que poderá se repetir na próxima entressafra. Até mesmo com maior intensidade.

A raiz do problema está no descasamento entre a velocidade do crescimento a nual da frota de veículos do tipo ´flex-fuel´, que aumenta a demanda de etanol hidratado, e o ritmo de crescimento da produção desse combustível, insuficiente para atender aos novos usuários. A escassez do produto no período da entressafra criou uma forte pressão sobre seus preços nas unidades de produção que detinham os estoques do produto e o aumento foi transferido para os postos de revenda. Para o proprietário dos veículos tipo ´flex´, a saída foi migrar para o produto concorrente, a gasolina, cujo preço se tornou mais atraente. Entretanto, como o etanol, na forma de anidro, tem mistura legal de 25% na gasolina, o violento aumento de seus preços puxou também os preços da gasolina tipo ´C´, que é consumida pelos veículos convencionais.

Em resumo, o forte aumento dos preços dos combustíveis atingiu indistintamente todos os usuários de veículos leves do país, provocando um sentimento nacional de perplexidade e indignação. Manchou a imagem do combustível alternativo, o etanol, e resvalou para a classe produtiva que está tendo que assumir o papel de vilão da crise.

Fracasso do álcool será grande obstáculo para a afirmação da biomassa como fonte energética limpa e renovável

No contexto atual, é possível atentar para as duas principais lições que é preciso tirar da crise.

Em primeiro lugar, se o etanol combustível for, de fato, um produto de interesse estratégico para o país, é necessário desenhar políticas públicas de suporte ao setor produtivo de modo a prevenir crises que ameacem sua saúde financeira. Nas safras 2007-08 e 2008-09, decorrente do rápido crescimento do volume da safra de cana-de-açúcar e da produção de etanol, o setor produtivo, que enfrenta no comércio desse combustível a competição de seus próprios pares e da gasolina, se sujeitou a dois anos seguidos de preços gravosos e passou por uma severa crise de liquidez e solvência. E as medidas isoladas de políticas públicas não foram suficientes para alterar o dramático quadro.

Como consequência, muitas usinas, inclusive algumas de grande porte e tradição nesse ramo, para fugir da ameaça de falência, foram vendidas a grupos externos ou se associaram ao capital internacional para sobreviver. Um grupo apreciável de unidades se viu na contingência de fazer planos de recuperação judicial para manter o negócio e está se esforçando para superar sua difícil realidade. Essa situação tornou inevitável a paralisação dos investimentos em novos canaviais e destilarias e a redução dos tratos culturais e renovação dos canaviais. Da mesma forma, essas circunstâncias forçaram a interrupção do crescimento da produção de etanol combustível, que se manteve nos mesmos níveis nas últimas safras, e perdeu o passo do crescimento da demanda potencial.

Em segundo, o setor produtivo deve assimilar o fato simples de que o mercado de combustíveis não pode ser tratado com um mercado convencional, como o de açúcar, cujos preços podem crescer ou baixar sem despertar a ira dos consumidores. O uso diário de combustível em veículos particulares representa uma fração importante e inevitável das despesas familiares e o repentino e forte aumento dos preços, como o ocorrido, não é assimilado pelos condutores que se sentem aviltados em suas finanças e seus direitos.

Essa reação adversa dos consumidores deve ser evitada sob risco de vermos questionado o atual modelo do mercado de combustíveis que pode ameaçar uma conquista importante da sociedade brasileira. Ou seja, a oportunidade de utilização, em grandes volumes, de um combustível alternativo, limpo e renovável.

Encontrar uma saída para que essa situação não se repita nos próximos anos e trazer de volta a regularidade do abastecimento, a estabilidade dos preços e a tranquilidade aos consumidores não é uma tarefa simples. A edição de medidas unilaterais de políticas públicas criando regras a ser cumpridas pelo setor privado não é o melhor caminho para a construção do futuro.

O caminho mais realista está na criação de um núcleo de inteligência congregando profissionais dos setores públicos e privados envolvidos e, a partir de uma visão estratégica que proteja o combustível renovável, além de definir metas e compromissos que possam ser cumpridos.

É preciso levar em conta a premissa que os produtos da biomassa são derivados da atividade agrícola e, portanto, suscetíveis aos condicionantes impostos pela natureza. Os profissionais dessa área sabem que a natureza se comporta como uma mãe opulenta e generosa, porém é muito exigente e rigorosa na obediência às suas leis.

Se nada for feito, e a ameaça ao futuro do álcool etílico como combustível vier a se materializar, o fracasso do país que é pioneiro e modelo na matéria transformar-se-á num grande obstáculo para a afirmação, em nível mundial, da biomassa como uma fonte energética limpa e renovável. Esse fato vai colocar em causa as chances dessa fonte em cumprir importante p apel na tarefa urgente de limpeza do planeta que as atuais e, principalmente, as futuras gerações terão que realizar.

Ângelo Bressan Filho mestre em Teoria Econômica pela FEA-USP, foi diretor do Departamento do Açúcar e do Álcool do Ministério da Agricultura e atualmente é especialista da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab).