Consolidou-se no ano que agora finda uma nova tendência, a entrada dos biocombustíveis na matriz energética global. A maior indicação disto está no fato de que a indústria do petróleo passou a incorporar o etanol e o biodiesel no seu portfólio de investimentos, fazendo disso o maior alarde (basta olhar o novo logo da BP e a publicidade mundial da Chevron, falando com entusiasmo do biodiesel). Até 2006, o setor de petróleo tratava como exóticos os produtos provenientes da agricultura.
Acredito que a combinação de altos preços do petróleo, com as convincentes evidências do processo de aquecimento global resultaram nesta profunda modificação. Para nós brasileiros, acostumados com o sucesso do etanol proveniente da cana-de-açúcar (que é o único combustível que, simultaneamente, é renovável, competitivo sem subsídios e que exige apenas um barril de petróleo para economizar oito), a aceitação dos biocombustíveis parece mais ou menos normal. Para o resto do mundo é uma revolução.
Para a agricultura a grande modificação vai se dar no mercado de grãos, pois a lógica da produção de alimentos vai se misturar com a lógica do mercado de energia, afetando o equilíbrio de ambos.
Para entender melhor esta questão, voltemos ao caso do etanol de cana. Quando se lançou o Proálcool, nos idos dos anos setenta, os mercados de açúcar e de álcool disputavam a mesma cana e logo nos demos conta que o preço de um dos produtos poderia subir relativamente ao outro, produzindo abundância em um mercado e escassez no outro. Foi o que aconteceu em 1989, quando a alta do preço do açúcar resultou em desabastecimento de etanol; os consumidores reagiram deixando de comprar carros a álcool e, na prática, o programa morreu.
A situação só foi resolvida de forma completa há pouco tempo, com a inovação dos carros de motor flexível. Até então, as variáveis de ajuste consistiam na variação do porcentual de mistura do anidro na gasolina, e alguma exportação de álcool, instrumentos visivelmente insuficientes para ajustar o mercado. Longas discussões sobre um estoque regulador nunca resultaram em algo aproveitável. No início deste ano a reação do público à redução da disponibilidade de álcool na entressafra de cana foi notável: rapidamente os motoristas aprenderam a mudar para a gasolina sempre que o diferencial de preços na bomba ficasse inferior a 25%, o que levou ao ajuste dos mercados.
Além do equilíbrio álcool/açúcar, os primeiros anos do Proálcool foram marcados pelo receio que a disputa por terras prejudicasse a produção de alimentos. Isto só se dissipou com o pacote tecnológico que permitiu a incorporação ao processo produtivo das terras do cerrado, concomitante à contínua elevação da produtividade da cana.
Como se vê, foram precisos quase trinta anos para que se encontrassem mecanismos de convivência e equilíbrio na produção simultânea de alimentos e biocombustíveis.