A IV Cúpula das Américas, iniciada hoje na cidade argentina de Mar del Plata, não deve ser vista apenas como cenário de confronto, mas pelo ângulo da oportunidade. O presidente americano George W. Bush não fez segredo que pretende apresentar os EUA como “bom vizinho”, que os países do hemisfério têm “interesses comuns” e devem tirar toda a vantagem possível da lógica do livre comércio, usando uma linguagem algo além da retórica diplomática característica desse tipo de encontro. Bush fez questão de destacar a relação privilegiada que tem com o presidente brasileiro, que “surpreendeu muita gente”, como disse em entrevista a quatro veículos de comunicação latino-americanos.
Nessa entrevista, o presidente americano admitiu que ele e Lula podem ter “diferentes sentidos sobre as coisas”, mas garantiu que “no fundo” compartilham ambos os mesmos objetivos. Embora Bush também tenha dito: “Não penso que ter boas relações significa concordar com os EUA o tempo todo”.
O presidente Lula nunca deixou de revelar os interesses “não coincidentes” com os EUA. O maior deles em torno de disputa no comércio exterior, em especial em relação a Área de Livre Comércio das Américas (Alca).
Bush foi preciso ao dizer que pretende preservar o comércio Brasil/EUA, “que está crescendo”. Mas também reconheceu que a Alca “empacou” e que nesse momento a Rodada Doha (da Organização Mundial do Comércio) ultrapassa a Alca como “prioridade”, porque Doha não envolve só a ” nossa vizinhança, mas o mundo inteiro”.
Esse reconhecimento é, de certo modo, uma vitória das posições defendidas pela diplomacia brasileira. Posicionamentos firmes do Itamaraty, incluindo a condenação da invasão do Iraque, não tisnaram a relação bilateral Washington/Brasília. Realçar Doha, leia-se OMC, como relevante é o essencial nas palavras de Bush. Tais palavras reconhecem como contendores de um mesmo jogo, a União Européia (UE), os EUA e os interesses dos emergentes liderados pela Índia, China, Brasil e África do Sul, ao lado dos demais integrantes do Grupo dos 20, o conjunto de economias em desenvolvimento que desde 2003 atuam em conjunto para negociar comércio agrícola.
Há alguns dias, quando os europeus comunicaram uma pífia proposta de redução de tarifas para importação agrícola, nem os EUA nem o G-20 aceitaram a oferta. A UE joga com a ameaça de novo fracasso na 6 Conferência Ministerial da OMC em Hong Kong e o comissário de Comércio da UE, Peter Mandelson, fez questão de advertir americanos e emergentes que “nem aquela oferta” será mantida se o outro lado não abrir rápido os mercados de produtos industriais e serviços.
Os emergentes querem que os europeus reduzam as tarifas em 54%. A UE ofereceu 47%, mas não linear, como média dos maiores e dos menores cortes, escondendo que deixaria fora do corte a lista de 200 produtos sensíveis, incluindo açúcar. Os EUA não morderam a isca e exigiram corte de 83% nas tarifas agrícolas dos europeus.
É um fato que a América do Sul ocupa espaço “reduzido” na pauta da diplomacia americana. Se não há tensão militar na região (com exceção do tráfico de drogas), há, por outro lado, muita complementaridade com setores econômicos americanos na América Latina. Sem esquecer o papel que o Brasil poderá ter, ao lado do Mercosul, no novo jogo de forças no comércio internacional, pós-entrada da China como player privilegiado, que será aberto em Hong Kong.
Não será surpresa, portanto, se Bush escolher o cenário da cúpula para declarações por redução de tarifas agrícolas no mundo, com os europeus e asiáticos pagando a conta, é claro.
Quanto a exacerbados confrontos políticos-ideológicos, a retórica conhecida nos dois lados, Bush e Chávez, tomará conta, sem produzir efeitos além do cenário da reunião. Para um público ideologicamente definido Bush dará a impressão que dá recados na direção de Havana ou Caracas. Ledo engano. Hoje, o destino prioritário das mensagens de Washington é Peter Mandelson e os seus liderados.