NA PELE – A dermatologista paulista Juliana Okay quer se beneficiar do real forte para modernizar seu consultório. Ela negocia a compra de um aparelho americano que faz depilação a laser, cujo preço em reais caiu de 450 000 para 300 000 entre janeiro de 2003 e abril de 2007. A decisão de comprá-lo veio com o cálculo de quanto Juliana gasta por ano com o aluguel do aparelho e de quantos novos pacientes ela vai atrair com uma máquina permanentemente em seu consultório. Hospitais, clínicas e outros profissionais liberais também aproveitam o fortalecimento da moeda brasileira para se equipar
• Um casal de classe média que pretendesse visitar a Disney World junto com os dois filhos teria de gastar, em 2003, o equivalente a dois meses de salário. Hoje a mesma viagem custa a metade.
• Uma dermatologista que quisesse equipar seu consultório com uma máquina de depilação a laser pagaria 450 000 reais pelo aparelho há quatro anos. Hoje o equipamento sai por 300 000 reais.
• Empresas brasileiras modernizam seus processos, compram máquinas novas e se associam a estrangeiros como raras vezes se viu.
• O governo praticamente recomprou toda a sua dívida em dólar.
• A entrada em massa no mercado brasileiro de produtos cotados em dólar e comprados em real forte tende a segurar a inflação, puxando todos os preços da economia para baixo.
Os fatos acima são facetas de uma única evolução, inédita e quase silenciosa, da economia brasileira, a valorização do real diante do dólar. A moeda brasileira subiu 58% em relação à americana nos últimos quatro anos, induzindo a uma mudança brutal no setor industrial e no padrão de consumo dos brasileiros. Desde o começo do ano o dólar recuou 5% e sua cotação já beira a barreira dos 2 reais. Essa marca é chamada de “barreira psicológica” – ou seja, as pessoas assumem que se chegar a 2 reais o dólar deve continuar caindo a um ritmo ainda mais forte. Muita gente, os consumidores principalmente, torce por isso. O real valorizado aumentou o poder de compra dos brasileiros. O fenômeno derrubou os preços dos produtos importados ou cotados em dólar. Pequenos empresários e profissionais liberais conseguem estudar no exterior e investir em seus negócios, importando equipamentos de última geração. Hospitais compram novos aparelhos e fábricas aproveitam o bom momento para modernizar seu parque industrial. “A julgar pela revolução das contas externas, o Brasil é hoje um outro país”, diz Walter Molano, sócio do banco de investimentos americano BCP Securities, especializado em América Latina. Para Molano, os ventos deverão seguir favoráveis nos próximos anos, em decorrência da ascensão chinesa e também da Índia.
Tudo isso pode parecer familiar aos brasileiros. Afinal de contas, o país já viveu outros momentos de fortalecimento cambial. Mas há uma mudança estrutural em curso, e ela veio para ficar. O Brasil caminha, como nunca antes, em sintonia com a economia mundial. Ainda que fatores conjunturais ou momentos especulativos possam aparecer no horizonte, o fato é que a estabilidade do real se dá pelo fortalecimento de alicerces econômicos internos que se mantêm intactos há treze anos. Não se trata de um soluço, mas de uma realidade que tende a perdurar. A inflação caiu a níveis civilizados, a dívida externa deixou de ser problema e as contas públicas foram ajustadas. Pela primeira vez na história o governo brasileiro deixou de ter uma dívida externa para tornar-se credor externo. Esse amadurecimento institucional permitiu ao país adotar um regime de câmbio flutuante, no qual as cotações das moedas oscilam livremente de acordo com a lei da oferta e da procura. Quando um país vai bem, ele atrai investimentos e sua moeda ganha força. É o que tem acontecido no Brasil. O governo perdeu a prerrogativa de determinar a taxa de câmbio. No passado, o governante de plantão interferia nas cotações para beneficiar esse ou aquele setor. Em todo o mundo, tal modelo fracassou e foi abandonado, porque trouxe endividamento, inflação e baixa produtividade. A economia brasileira virou essa página e tornou-se sólida o bastante para ingressar em uma nova fase de prosperidade.
O PÉ-DE-MEIA DA PRODUTIVIDADE
Poucos fabricantes foram tão ameaçados pela competição chinesa quanto os de meias. Como reagir? A Lupo usou o real forte para renovar seu parque industrial. Deu certo. O crescimento da empresa subiu de 9%, em 2003, para 21% em 2006
Transformações estruturais como essa não são novidade na economia mundial. São vários os exemplos históricos de inovações que alteraram profundamente o modo de produção ao longo do tempo, substituindo modelos antiquados por novos paradigmas. Os computadores condenaram à morte as fábricas de máquinas de escrever, impulsionaram ganhos de produtividade em todo o mundo e criaram milhões de empregos. Seu impacto, para o conjunto da economia, excedeu com folga a perda ocasionada pela derrocada da indústria da datilografia. Inovações tecnológicas e institucionais costumam ser os motores dos ciclos econômicos – a descoberta do fogo, a invenção da máquina a vapor, a criação da linha de montagem, a revolução das telecomunicações. Tal fenômeno ficou conhecido como “destruição criativa”, conceito introduzido pelo economista austríaco Joseph Schumpeter em 1942, em seu livro Capitalismo, Socialismo e Democracia. As revoluções não precisam ser necessariamente tecnológicas. Podem ser também trabalhistas, como a que ocorre atualmente graças à China e à Índia. O mundo todo passa por uma nova distribuição de forças, processo do qual o Brasil não escapará ileso – mas do qual tem tudo para beneficiar-se, a despeito do prejuízo de certas atividades que não terão como se manter competitivas nesse novo ambiente.
Por ora, o saldo tem sido positivo para o Brasil. Sinal disso é que o real se tornou hoje uma moeda forte e estável, e não artificialmente sobrevalorizada, ao contrário do que ocorreu na fase inicial de combate à hiperinflação do Plano Real, quando o regime de câmbio era fixo. Desde a adoção do câmbio flexível, em 1999, as vendas externas cresceram rapidamente e o Brasil, que tinha um saldo negativo na sua balança comercial, começou a ter grandes superávits. Contribuiu para isso também o forte crescimento do comércio mundial no período, liderado pela China, o que elevou a demanda e os preços das commodities vendidas pelo Brasil – produtos como soja e minério de ferro. Em 1999, o Brasil exportou apenas 48 bilhões de reais. No ano passado, foram mais de 137 bilhões. Há dez anos, a balança comercial tinha déficits superiores a 6 bilhões de dólares ao ano. No ano passado, houve um superávit de 46 bilhões de dólares. Com esse saldo nas contas externas, há dólares de sobra na economia, o que enfraquece a cotação da moeda americana e fortalece o real. Trata-se de uma situação inédita na história recente do Brasil. Nas últimas três décadas, as principais crises do país estiveram associadas justamente à falta de dólares.
DARWINISMO INDUSTRIAL – Um desafio, duas respostas. A Samello, de Franca (SP), sucumbiu à concorrência chinesa e teve de parar sua produção. Já a Anzetutto, de Novo Hamburgo (RS), investiu em designs exclusivos e agregou valor à marca. Com isso, ampliou sua exportação
Os mais céticos custam a aceitar que o país mudou de patamar e afirmam que a valorização do real nada mais é do que um reflexo dos altos juros brasileiros, que, segundo eles, atraem capital especulativo e distorcem o câmbio. Mas essa é a visão de uma minoria. Opiniões à parte, o fato é que os investidores dos mercados financeiros nunca depositaram tanta confiança na estabilidade monetária de longo prazo no país. Nesses mercados, apostas erradas podem custar prejuízos de bilhões de dólares, por isso não há indicador mais sensível da avaliação da economia do país. E o que dizem esses investidores? O Brasil goza de uma respeitabilidade inédita. Já consegue emitir títulos de longo prazo, com vencimentos de 45 anos, e a juros cada vez menores. Se os investidores não confiassem no país, não comprariam um papel de vencimento tão longo. Em momentos de crise, para se ter uma idéia, ninguém se dispunha a financiar a dívida pública, e a saída foi emitir títulos com vencimento diário – sim, de um único dia, tal a desconfiança em relação ao país. Pudera. Nos últimos 45 anos, o Brasil enfrentou o choque do petróleo, a crise da dívida externa, o confisco da poupança e períodos de hiperinflação. Entre 1967 e 1994, o país teve sete moedas. A estabilidade veio depois de onze planos econômicos malsucedidos e duas moratórias. O último estresse financeiro ocorreu em 2002, quando o temor dos investidores diante da perspectiva de um governo petista provocou uma fuga de capitais e empurrou a cotação do dólar para perto de 4 reais. Nos últimos quatro anos, o país reconquistou a confiança internacional e o real foi a moeda que mais se valorizou na comparação com o dólar em todo o mundo (veja quadro).
Parte dessa valorização recorde também se deve ao contexto mundial do enfraquecimento do dólar. Nos últimos quatro anos, tem havido dois movimentos concomitantes: de um lado, o real ganha credibilidade e musculatura; de outro, o dólar perde valor em todo o mundo. Afirma Alexandre Maia, economista da GAP Asset Management: “Em quase todo o mundo, o dólar tem perdido valor, resultado de um ajuste gradual do déficit comercial dos Estados Unidos”. Isso ajuda a entender por que o real pode parecer apreciado diante do dólar, mas está longe de exibir uma ultravalorização ante outras moedas. De acordo com estatísticas do Banco Central, a cotação do real está hoje dentro de sua média histórica dos últimos vinte anos, levando-se em conta a comparação não apenas com o dólar, mas também com uma cesta de moedas dos países com os quais o Brasil mantém relações comerciais. “Não há evidências de que o real esteja valorizado, pelo contrário”, diz Darwin Dib, economista do Unibanco. “Se é fato que alguns exportadores perderam rentabilidade, o setor de serviços saiu ganhando. E os empregos criados pelo setor de serviços são tão nobres quanto os perdidos por algumas indústrias.”
O fato é que a destruição criativa por que passa a economia brasileira deixará feridos e vítimas fatais. Principalmente num país com juros e carga tributária pornográficos, como os brasileiros. Mas também é verdade que a situação cria um processo de darwinismo industrial por meio do qual alguns, os mais competentes, conseguirão se salvar. Exemplo disso é a fabricante de brinquedos Estrela. Em 1996, a invasão de produtos chineses quase obrigou a empresa a fechar as portas. Foram dez anos de ajustes para retomar o passo, mas funcionou. No ano passado, seu presidente, Carlos Tilkian, comemorou o aumento de 40% no faturamento. Como a Estrela escapou da guilhotina chinesa e do real fortalecido? “Deixamos de vê-los como ameaça e passamos a encará-los como aliados”, diz ele. Hoje, um terço dos produtos que levam a marca da Estrela é fabricado na China. A empresa envia o projeto e mantém a qualidade de seus brinquedos. Como os custos produtivos chineses são muito mais baixos, o produto final chega ao Brasil custando 35% menos. Quando o real se desvaloriza um pouco, a empresa pode mudar o foco de sua produção para o Brasil. Trata-se da versão industrial do flex fuel, aquele motor movido tanto a gasolina quanto a álcool – neste caso, a qualquer tipo de câmbio. A Estrela não foi a única. A têxtil Coteminas, do vice-presidente José Alencar, também vai abrir uma fábrica na China. Outras, como a fabricante de meias Lupo, aproveitam o momento de dólar em queda para importar máquinas, aumentar sua produtividade e fazer produtos com maior valor agregado.
Esses são apenas alguns exemplos de como é possível sobreviver e crescer nesse novo ambiente econômico. O problema é que há um limite para os ganhos de produtividade. Cedo ou tarde, os empresários brasileiros acabam esbarrando em velhos e conhecidos obstáculos – alto custo de contratação do trabalhador formal, sistema tributário perverso, gargalos na infra-estrutura, falta de mão-de-obra qualificada, entre outros. Com o dólar nas alturas, essas barreiras permaneceram disfarçadas. Agora que o real retornou a um patamar de equilíbrio, tais mazelas ficaram mais evidentes. Antes de buscar artificialismos cambiais para despistá-las, o país deveria contorná-las quanto antes. Felizmente, o governo se convenceu de que o dólar barato veio para ficar. Por isso estuda medidas que possam compensar a perda de rentabilidade das indústrias voltadas para a exportação. Entre outras iniciativas, procura uma maneira de reduzir os encargos trabalhistas. Com essa boa notícia, o governo rejeita as pressões para elevar as tarifas de importação, o que, a pretexto de proteger setores econômicos ameaçados, isolaria o país do melhor momento da economia mundial em décadas.
Isso não significa que o governo não deva observar atentamente o câmbio. Se no passado a fuga de capitais tirava o sono de autoridades econômicas brasileiras, hoje elas precisam lidar com uma enxurrada de dólares, algo inédito. Para atenuar o tombo do dólar, o BC tem comprado grandes quantidades da moeda americana e ampliado as reservas internacionais do país – em 2000, o Brasil chegou a ter menos de 30 bilhões de dólares em suas reservas de moeda forte e hoje elas já passam de 110 bilhões de dólares. Com esse colchão de segurança, mais o saldo superior a 40 bilhões de dólares na balança comercial, o BC pode seguir sua trajetória de queda de juros sem que haja o risco de reaquecimento inflacionário. Esse é mais um benefício da estabilidade e do real forte. Um ou outro setor pode sair perdendo com o aumento das importações, mas isso permite que o consumo e o crédito possam crescer rapidamente sem que haja remarcação de preços.
Então o dólar seguirá irreversivelmente em queda? Não necessariamente. O câmbio é flutuante e oscila de acordo com o fluxo de recursos. Se houver uma crise, os investidores poderão retirar parte das aplicações feitas no país, o que elevaria a cotação do dólar – mas nada similar às hecatombes financeiras do passado. O que aumenta a segurança dos investidores é que não só o Brasil, mas a grande maioria dos emergentes passou por ajustes. Como afirmou o economista indiano Raghuram Rajan, da Universidade de Chicago, em entrevista a VEJA: “Grande parte dos emergentes tem hoje uma situação muito mais saudável do que na década passada. Um dos motivos para isso é que boa parte deles tem hoje câmbio flexível, controla a inflação, solucionou o problema da dívida e acumulou grandes reservas”. O Brasil figura com brilho na lista desses países mais bem protegidos.
UMA SALVADOR DE VIAJANTES
Garoto-propaganda: dólar barato vira chamariz para vender pacotes turísticos
Nunca antes na história deste país, para usar a famosa frase de efeito do presidente Lula, os brasileiros foram tanto ao exterior. O próprio Lula deu o exemplo: fez uma média de 1,35 viagem internacional por mês, contra a média de 0,85 do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. O presidente não esteve sozinho nessa busca crescente por integração. Estima-se que 5,7 milhões de brasileiros tenham visitado outro país no ano passado. Recorde histórico, esse número inclui não só turistas, mas também viagens por motivo de trabalho, saúde ou educação. Comparado ao registro de 2003 (3,2 milhões de viagens), ano em que o real começou sua trajetória sólida de valorização, barateando passagens internacionais, hotéis no exterior e gastos em dólar no cartão de crédito, houve um acréscimo de 2,5 milhões de viajantes – contingente comparável a toda a população de uma metrópole como Salvador. Os gastos de brasileiros no exterior também foram recorde em 2006: 5,7 bilhões de dólares, o equivalente ao orçamento anual de programas como o Bolsa Família. Esse fenômeno elevou a acirrada competição entre as operadoras de turismo, que, com anúncios focados na valorização do câmbio, baratearam ainda mais os pacotes mais vendidos – para Buenos Aires, Bariloche, Madri, Santiago, Disney, Isla Margarita, Paris, Nova York, Miami e Caribe.
Cíntia Borsato
COM O PRESTÍGIO INABALADO
A mais recente rodada de pesquisas sobre a popularidade do presidente Lula surpreendeu quem imaginava que o apagão aéreo causaria estragos na imagem do governo. Um dos levantamentos, produzido pelo instituto Sensus, revela que a aprovação pessoal do presidente aumentou de 59,3% para 63,7% em relação à pesquisa anterior, divulgada em agosto do ano passado. A aprovação do governo é ainda mais surpreendente. Metade dos entrevistados avalia como positiva a gestão petista, um apoio inédito em quatro anos de mandato. Outra pesquisa, realizada pelo Ibope, mostrou uma pequena queda na avaliação do governo em relação a um levantamento mais recente do próprio Ibope, mas ainda assim a aprovação é muito alta – e praticamente igual à aferida pelo Sensus. A divulgação produziu interpretações variadas para o inabalável prestígio presidencial. Uma delas informa que a popularidade de Lula se mantém alta porque a quantidade de eleitores que viajam de avião é irrisória. Outra atribui os bons números ao seu carisma e à sua habilidade para se comunicar com as massas. É certo que tudo isso contribui, mas a lua-de-mel de Lula com o eleitorado se deve, fundamentalmente, à safra de boas notícias econômicas.
A história ensina que não há carisma que sobreviva a uma economia em frangalhos. O ex-presidente Fernando Collor viu sua aprovação cair à metade no primeiro ano de mandato por causa de um desastrado confisco e da disparada da inflação. Já a aprovação de seu sucessor, Itamar Franco, saltou de 16% para 37% em 1994, num período de apenas quatro meses, graças aos efeitos do Plano Real. O ex-presidente Fernando Henrique também experimentou a relação entre popularidade e desempenho da economia. Em 1999, quando as crises que sacudiam o mundo chegaram ao Brasil, sua popularidade desabou de 45% para 22% em quatro meses. Lula vive o efeito inverso. “O ambiente econômico é extremamente positivo, sobretudo para os mais pobres. A renda deles já registrou picos de crescimento de até 12%. Isso significa que há uma parcela dos brasileiros vivendo na China”, diz a cientista política Fernanda Machiaveli, da Tendências Consultoria. O bom humor do mercado também parece ter contaminado o cidadão comum. Embora a maior parte dos eleitores ache que emprego, saúde e segurança pública pioraram e que a renda está estagnada, a maioria acredita que tudo vai melhorar nos próximos seis meses.