Mercado

O que vem depois da Bolsa

O dia da abertura do capital de uma empresa na bolsa de valores é, quase sempre, eufórico. Se tudo dá certo, em uma só tacada a empresa levanta recursos para financiar seu crescimento, e controladores e investidores que compram as ações costumam terminar a sessão mais ricos do que começaram. Esse é, também, um dia simbólico, um rito de passagem em que uma companhia normalmente erguida pelo instinto de um empreendedor entra no seleto clube das empresas listadas em bolsa — o que lhe confere uma espécie de atestado de maturidade. Dezenas de empresários brasileiros têm atravessado esse primeiro dia com o mesmo sorriso largo dos fundadores da Natura, vistos na foto acima. O dia seguinte a esse entusiasmo, porém, traz certa ressaca, um choque de realidade. É quando se constata que todos esses benefícios trazem um custo. A empresa muda — e muda para sempre. “Uma companhia que vai abrir o capital na bolsa precisa estar consciente de que terá outra vida”, diz José Antonio Filippo, vice-presidente financeiro da CPFL, companhia elétrica que emitiu ações em 2004. “Não adianta apenas preparar a abertura, é preciso traçar um plano para o dia seguinte.”

A primeira grande transformação é a multiplicação de donos. Uma empresa fechada responde basicamente às vontades de seu fundador, ou de seus herdeiros. Quando os donos têm talento, esse jeito de administrar traz vantagens inegáveis: a companhia toma decisões rapidamente e sai na frente da concorrência, sem prestar contas. Quando o empresário Samuel Klein, da Casas Bahia, diz que vai inaugurar mais 100 lojas no período de um ano ou que o faturamento vai crescer 100%, não precisa convencer mais ninguém de que essa é a melhor estratégia para a sua companhia. “Numa empresa fechada, você acha que é o rei”, diz José Olympio Pereira, diretor do banco Credit Suisse. No dia seguinte à emissão de ações, porém, os controladores passam a responder aos humores do mercado, aos desejos de fundos de investimento estrangeiros e às dú vidas de analistas. “Eu me reúno com investidores nacionais e estrangeiros e acompanho a cotação das ações o dia inteiro”, diz Marcelo Epperlei, diretor-geral do UOL, empresa que recentemente abriu seu capital. “Acabo gastando 25% do meu tempo só nisso.”

Na relação com o mercado financeiro, o empresário e seus principais executivos são obrigados a se equilibrar numa linha fina. Por um lado, os investidores exigem transparência para analisar a estratégia e os números da companhia. Por outro, a empresa teme que essa transparência signifique entregar informações valiosas aos concorrentes. Em muitos casos, esse temor tem fundamento. Tome-se como exemplo o caso da Gol. Sua estrutura de custos sempre foi sua maior vantagem competitiva. Enquanto ela se manteve fechada, seus concorrentes foram incapazes de identificar como a empresa liderada por Constantino de Oliveira Júnior conseguia operar de forma tão enxuta. Desde a abertura de capital, há dois anos, a Gol é obrigada a divulgar de onde vem boa parte dessa eficiência — o que tem mostrado à TAM, sua principal rival, quais são os pontos mais importantes a atacar. De 2003 até hoje, a diferença entre os custos das duas empresas caiu de mais de 30% para cerca de 15%. “Você acaba perdendo a privacidade”, diz Richard Lark, vice-presidente financeiro da Gol.

Além da interferência na administração e da dificuldade de manter suas informações em segredo, uma empresa está sujeita a outros efeitos colaterais potencialmente perturbadores. Ao ingressar no mercado de ações, sua capacidade de lidar com analistas, oferecer projeções confiáveis e responder rapidamente a crises passa a ser testada ininterruptamente. Falhas nesses três quesitos podem trazer conseqüências dramáticas, como aconteceu com três companhias da nova geração da bolsa que tiveram quedas bruscas em suas ações: Grendene, Renar e UOL. Poucos meses depois de sua abertura de capital, a Grendene entregou resultados menores que as projeções — a diferença entre promessa e realidade chegou a 37%. Como conseqüência, o mercado puniu a fabricante de calçados e o valor de seus papéis caiu à metade. “O investidor não quer promessas espetaculares, mas sim indicativos confiáveis”, diz Mauro Giorgi, analista da corretora Geração Futuro. “Arranhar a reputação foi fácil, mas vai levar tempo para a Grendene se recuperar.” Ainda hoje as ações da empresa valem 40% menos que na época da emissão, em outubro de 2004. Em janeiro, os executivos do portal UOL foram surpreendidos por um relatório do banco de investimentos Merrill Lynch que considerava o preço de suas ações alto demais. Em apenas um dia, o valor de mercado da companhia caiu 24%. Os analistas julgaram que a resposta da empresa não foi rápida o suficiente, e até agora as ações não se recuperaram totalmente.

Embora tenham enfrentado contratempos, Grendene e UOL são vistas como empresas eficientes e profissionais — e começaram a consertar o que estava errado. Oscilações na cotação das ações, aliás, fazem parte da rotina das companhias abertas. O problema da Renar Maçãs, porém, é mais complexo. Com valor de mercado de apenas 28 milhões de reais (ante 7,2 bilhões da Cosan, por exemplo, outra companhia que atua no agronegócio), a empresa foi desde o início encarada com desconfiança. A percepção dos investidores era de que se tratava de uma empresa pequena e despreparada para a operação — que estava abrindo seu capital não por convicção, mas seguindo uma espécie de efeito manada. A percepção, aparentemente, estava certa. “Eu não tinha experiência com o mercado de capitais”, diz Elvito Coldebella, o responsável pelas relações com o mercado na época. Coldebella era o contador da companhia, e a Renar não tinha sequer uma página com informações na internet. “Não era a minha praia. Eu entendia de maçãs, mas os investidores não queriam saber disso, e sim do retorno financeiro.” Meses após a abertura de capital, o valor dos papéis havia sido reduzido a quase 50%.

O desempenho da Renar é uma prova dos riscos que as empresas correm ao encarar o mercado sem antes desenvolver uma sólida musculatura. Para evitar fiascos, as companhias passam por um processo rigoroso — e caro — que pode levar anos de preparação. A Natura consumiu meia década entre a decisão de abrir o capital e o dia da emissão de ações. Os fundadores Pedro Passos, Guilherme Leal e Luiz Seabra criaram uma lista com 20 objetivos a ser atingidos antes da ida ao mercado — entre eles o crescimento do lucro líquido nos três anos que antecederam a abertura de capital, a elaboração de demonstrações financeiras no padrão contábil americano e o fortalecimento de sua imagem socialmente responsável. No caminho até a festa na bolsa, o nível de trabalho cresce continuamente. Em média, a operação de abertura de capital de uma empresa do porte da Natura envolve oito executivos da empresa, 16 advogados de quatro escritórios e mais de 50 especialistas de dois bancos. Todo esse pelotão viaja pelo mundo no road show, uma série de reuniões em que a empresa é oferecida a investidores. Os custos de toda essa movimentação são superlativos. Os bancos levam cerca de 5% do valor da emissão, e os advogados, mais de 2 milhões de reais. “Os gastos costumam surpreender os empresários”, diz o advogado José Eduardo Queiroz, do Mattos Filho.

Para as empresas que se preparam adequadamente e conseguem driblar as dificuldades que vêm embutidas no processo de abertura de capital, as vantagens são diversas. A mais óbvia (e importante) é o acesso a capital mais barato que o obtido nos bancos. Meses após sua emissão de ações, a Cosan anunciou a compra de duas usinas de açúcar e álcool. Mais da metade dos 885 milhões de reais levantados na operação foi investida nessas aquisições. “Sempre tivemos muitos projetos de aquisição, mas precisávamos de capital”, afirma Rubens Ometto, presidente da Cosan. Segundo os especialistas, uma companhia aberta tem maior incentivo à alta performance — a distribuição de opções de ações aos executivos, por exemplo, ajuda a eliminar feudos e impulsiona a busca por resultados. “As opções de ações também aumentam nossa capacidade de reter talentos”, diz Silvio Guerra, diretor da Localiza, líder no mercado de locação de automóveis, que abriu capital em junho do ano passado. No Brasil, toda essa teoria está tendo um resultado prático: o patrimônio dos controladores das novatas da bolsa aumentou, em média, 44% nos seis meses que se seguiram à emissão de ações. A construtora Company, por exemplo, chegou a ser oferecida anos atrás por 100 milhões de reais (alguns dos procurados ofereceram não mais que 30 milhões de reais). Poucas semanas após a abertura de capital, em março, a Company já vale mais de 600 milhões de reais. “Historicamente, as empresas abertas valem mais que as fechadas”, diz Lubos Pastor, professor de finanças da Universidade de Chicago.

O fenômeno da multiplicação de donos — apesar de diminuir a autonomia dos executivos — traz, também, um efeito positivo. O fato de ter de prestar contas a inúmeros investidores obriga uma companhia aberta a ser mais cautelosa e a trocar informações com pessoas que podem ajudar a definir seus movimentos. “O mercado faz com que os executivos reflitam sobre as decisões estratégicas, e isso é bom”, diz Rodolfo Riechert, diretor do banco Pactual. Para algumas companhias, porém, o compartilhamento de informações é algo impensável. A fabricante americana de chocolates Mars, uma das maiores do planeta, prefere manter-se fechada a revelar seus segredos. De acordo com um livro sobre a empresa, fornecedores que entram em algumas fábricas precisam usar vendas nos olhos. O sigilo em torno da companhia é comparado ao da CIA, agência de espionagem americana (e vizinha da sede da Mars, na Virgínia). No Brasil, grupos como Votorantim pertencem a esse time. “Não nos tornamos públicos por pura falta de necessidade, mas é um ótimo caminho para empresas que estão começando ou que precisam se capitalizar”, diz Antônio Ermírio de Moraes, presidente do grupo Votorantim. Nos últimos tempos, quem optou por essa saída — e fez a lição de casa direito — não tem tido do que reclamar.