Mercado

O mercado é mais forte que ele

Lula terá de governar dentro dos limites impostos pelo mundo globalizado, no qual investidores têm mais poder que presidentes

Revista Exame – ED.880

Na segunda-feira 30 de outubro, primeiro dia após a reeleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o mercado financeiro voltou no tempo. Por alguns instantes, velhos temores de descontrole na condução da economia, que foram a marca do pleito de 2002, ressurgiram nas mesas de operações de bancos e corretoras, aqui e lá fora. Na véspera, atrapalhando a festa da vitória de seu candidato, auxiliares próximos do presidente que constituem a chamada ala desenvolvimentista do governo se apressaram em prever uma guinada para turbinar o crescimento econômico. “A preocupação neurótica com a inflação, a política monetarista e conservadora de Palocci, isso terminou”, disse Tarso Genro, ministro das Relações Institucionais, referindo-se ao ex-ministro da Fazenda de Lula, Antonio Palocci. Foi o bastante para que o dólar comercial subisse, a Bovespa caísse, os contratos de juros na Bolsa de Mercadorias & Futuros apontassem alta nas cotações e o risco-país piorasse quase 2%. À sua moda, o mercado mandava o recado.

Escaldado por crises anteriores, o presidente não titubeou. Imediatamente, desautorizou as declarações de Genro e asseverou que a política econômica é dele, Lula, não do ministro de plantão. “Não teve era Palocci, como não tem era Guido Mantega. A política econômica é determinada pelo governo e sobretudo por mim”, disse Lula. O evento, afinal superado, foi uma demonstração cabal do poder quase supremo dos mercados ante o mundo político — e um valioso guia para quem busca entender como deverão ser os próximos quatro anos na economia brasileira. Por mais que desejem, Lula e seus colaboradores não têm o poder de ditar as regras ao mundo dos negócios. A razão é que, no estágio de evolução atual da economia brasileira e de inserção do país no jogo da globalização, não cabem mais desvios de rota. Um dos principais efeitos da globalização, talvez dos mais benéficos, foi justamente a redução da margem de poder dos governantes das nações participantes. Lula fará apenas o que o mercado lhe permitir — não dará um único passo além, por mais frustrante que isso seja para alguém que acaba de colher 58 milhões de votos. “Hoje, o presidente de um país como o Brasil não pode mais fazer simplesmente o que lhe dá na veneta”, afirma Simão Silber, professor de economia da Universidade de São Paulo. “Temos uma economia sofisticada, um fluxo de comércio elevado e compromissos internacionais assumidos, que impõem o respeito a contratos e submetem a economia a um conjunto mínimo de regras de estabilidade.” Com a integração mundial do comércio e dos mercados financeiros, o dinheiro é livre e entra e sai de um país com muita rapidez quando o investidor se sente em risco. Foi o que se viu, ainda que por poucos instantes, no day after da vitória eleitoral. Por menos que Lula faça — e fazer pouco ainda é melhor do que fazer errado — o Brasil ainda assim crescerá enquanto a economia mundial crescer.

Tais avanços na inserção global do país fazem com que a economia real — a das empresas que produzem e empregam e dos cidadãos que trabalham e consomem bens e serviços — se descole crescentemente da agitação constante de Brasília. Não que as decisões sobre carga de impostos, investimentos na infra-estrutura ou o nível dos juros básicos tenham perdido a relevância no dia-a-dia dos negócios ou das pessoas. É claro que o país e as empresas teriam muito a ganhar se os problemas concretos fossem, afinal, resolvidos. Mas, especialmente para o grupo das maiores empresas do Brasil, a vida segue apesar do governo — e não mais por causa dele. “O país pode ter qualquer presidente que vamos continuar ganhando dinheiro, porque fazemos matérias-primas consumidas no mundo inteiro e, se não vendermos aqui, venderemos lá fora”, diz José Ricardo Roriz Coelho, presidente da Suzano Petroquímica e do sindicato dos fabricantes de resinas plásticas de São Paulo. Desde 2003, o grupo Suzano investiu 1,6 bilhão de dólares em suas diversas fábricas de produtos petroquímicos e mais 1,3 bilhão de dólares na área de papel e celulose.

Cenário positivo

O que esperar quanto ao desempenho de alguns dos mais importantes setores produtivos da economia do país nos próximos anos

Papel e celulose

Na área de celulose, a expectativa para 2007 é pelo menos repetir o crescimento de 6% estimado neste ano. Demanda internacional em alta e fechamento de fábricas no hemisfério norte sustentam o otimismo

20 bilhões de reais

em investimentos estão previstos pelo setor para os próximos quatro anos, mais que o dobro do que foi gasto desde 2002. Para ampliar sua unidade no Paraná, a Klabin anunciou, em setembro, investimento de 2,2 bilhões de reais

Telecomunicações

As operadoras devem investir 40 bilhões de reais até 2010. A Telefônica anunciou investimento de 12,5 bilhões de dólares na América Latina, metade no Brasil. O faturamento do setor continuará a crescer

Receitas das operadoras

(em bilhões de reais)

2006 76

2007 83

2008 88

2009 92

2010 95

Fonte: Yankee Group

Siderúrgico

A capacidade brasileira de produção de aço deve duplicar para 72 milhões de toneladas por ano em 2011.A forte ampliação dos investimentos deve-se ao custo de produção altamente competitivo no país

46 bilhões de reais

devem somar os investimentos na siderurgia nos próximos cinco anos. Entre os novos projetos está o de parceria entre a Vale e a alemã ThyssenKrupp para construir uma usina no estado do Rio de Janeiro, orçada em 2,5 bilhões de dólares

Químico

Tanto a Abiquim, associação de empresas do setor, quanto o BNDES desenham cenário de investimento constante na produção de petroquímicos básicos, como resinas para fabricação de plásticos.Veja as projeções

Investimentos

(em bilhões de dólares)

2006 2,6

2007 2,8

2008 2,8

2009 2,3

2010 1,9

2011 2,5

Fonte: Abiquim

Automobilístico

A maioria das montadoras, após quase uma década operando no vermelho, voltou a ganhar dinheiro no Brasil em 2006. A produção no ano deve superar 2,6 milhões de unidades

3 bilhões de reais

serão destinados pela Fiat a suas operações no Brasil até 2008. A Volkswagen confirmou investimentos de 2,5 bilhões de reais após chegar a um acordo sobre cortes na fábrica de São Bernardo do Campo, no ABC paulista

Tecnologia da informação

Em 2007, o setor deve investir 1 bilhão de reais, 66% mais do que neste ano. O corte de impostos e a oferta de crédito permitiram inédita reação sobre o mercado cinza, reduzido a menos de 50% do total das vendas

Vendas de pcs legais

(em milhões de unidades)

2003 3

2006 7

2010 11,5

Fonte: IDC

O descolamento entre economia e política — e seus efeitos benéficos sobre os negócios — é nítido num setor como o de açúcar e de álcool, que deslanchou depois de sair de debaixo da asa do Estado. Por décadas, o governo estabeleceu cotas de produção para todas as etapas da cadeia produtiva — de quantos pés de cana seriam plantados a quantos gramas de açúcar poderiam ser produzidos. Nos anos 90, a atividade foi desregulamentada e, livres da tutela do governo, os empresários transformaram a indústria canavieira em um dos ramos mais dinâmicos da economia nacional. “Hoje o setor acompanha a demanda do mercado e não tem nenhuma relação com a política, o que é muito bom”, diz Plinio Nastari, diretor da consultoria especializada Datagro. “Foi só depois da privatização do setor que as usinas puderam se desenvolver e chegar ao patamar em que estão hoje.” Como as projeções indicam que a demanda pelo álcool crescerá exponencialmente nos próximos anos, especialmente se mais e mais países passarem a adotar o etanol, os negócios continuam em alta — há 90 projetos de usinas saindo do papel. Muitas das novas unidades nem sequer vão produzir açúcar. “O clima é de entusiasmo e de otimismo diante do crescimento da demanda”, diz João Carlos de Figueiredo Ferraz, presidente da Crystalsev, comercializadora criada por nove usineiros e que está investindo 120 milhões de reais na construção de uma usina própria de álcool a ser inaugurada em 2008. Pelas estimativas da Datagro, o faturamento do setor, apenas com o etanol, passará de 16,8 bilhões de dólares neste ano para quase 27 bilhões em 2010.

Assim como acontece com os produtores de etanol, há diversos outros setores que projetam crescimento nas vendas e ampliação dos investimentos nos próximos anos (veja quadro abaixo). Os planos são promissores em áreas como a siderurgia, a mineração, a de celulose e papel e a química e petroquímica. Na produção de aço, em que o Brasil tem vantagens competitivas para crescer como fornecedor mundial, o total de inversões previstas até 2011 supera os 46 bilhões de reais. Se os projetos se concretizarem, o país duplicará em apenas cinco anos a capacidade formada ao longo de sete décadas.

No mercado financeiro, o dinheiro de grandes investidores internacionais, como fundos de pensão, seguradoras e fundos de investimento, vai continuar aquecendo os negócios. “Teremos mais um ano movimentado na bolsa de valores”, diz Alexandre Bettamio, diretor do banco de investimentos UBS, responsável por ofertas de ações na bolsa de valores. “E com forte participação dos estrangeiros.” Neste ano, até outubro, o valor médio negociado diariamente na Bovespa cresceu 60%. De acordo com Bettamio, a irrigação de capitais para a bolsa brasileira persistirá por duas razões básicas. A primeira é o fato de o dinheiro continuar farto no exterior. A segunda é a crescente profissionalização das empresas nacionais, se consolidando como boas opções de investimento. Nos últimos meses, o fortalecimento de companhias brasileiras passou a despertar a atenção de investidores de longo prazo, interessados em se tornar sócios diretos (o chamado investidor de private equity). Pelas estimativas da Associação Brasileira de Private Equity e Venture Capital (ABVCap), o investimento acumulado em negócios no país deve passar de 700 milhões de dólares neste ano para 2 bilhões de dólares em 2008. “Muitos fundos de private equity que vinham concentrando recursos na China, na Índia e no Leste Europeu vão canalizar dinheiro para o Brasil”, diz Marcus Regueira, presidente da ABVCap. “E isso não tem nada a ver com a eleição. Para o investidor internacional, a economia brasileira descolou da política. A atração está nas empresas e na perspectiva de estabilidade.”

No pelotão de elite das empresas brasileiras há aquelas que se distanciam até mesmo geograficamente de Brasília — montando operações globais. O movimento de internacionalização atual é o maior já registrado no país. Com a compra da canadense Inco pela Vale do Rio Doce, cujo valor pode alcançar 18 bilhões de dólares, o volume de investimento de empresas brasileiras no exterior deve fechar no dobro do valor investido em 2004, ano do recorde anterior. O grupo Camargo Corrêa é um dos mais ativos no caminho da internacionalização. “Nosso objetivo é tornar o grupo realmente global”, afirma João Ricardo Auler, vice-presidente de desenvolvimento de negócios do braço de construção da Camargo Corrêa. “Precisamos crescer, e uma das maneiras de fazer isso é buscar novos mercados.” Nos últimos dois anos, a construtora intensificou a atividade no exterior. Atualmente, cerca de 10% da receita da área de engenharia e construções é originada em países da América Latina e na África. No ano passado, a área de cimento do grupo arrematou a maior cimenteira argentina, a Loma Negra, por mais de 1 bilhão de dólares. Outro negócio de peso ocorrido foi no setor têxtil, que vem sofrendo com a concorrência chinesa. Em março deste ano, a Santista Têxtil, controlada pela Camargo Corrêa, fundiu-se à espanhola Tavex e criou a maior fabricante de denim do planeta.

Seria exagero, claro, dizer que o ocupante do Palácio do Planalto não afeta em nada, para o bem ou para o mal, a economia do país. Empresas — particularmente as pequenas e médias — sofrem duramente as conseqüências do ambiente de negócios adverso, da insegurança quanto à regulação, da incerteza na garantia da propriedade, do custo elevadíssimo do capital, da pesada carga tributária e de tantos outros pontos em que o país deixa a desejar. Os fabricantes de celulose, por exemplo, mesmo sendo dos mais competitivos no cenário internacional, poderiam ter custos 15% menores — e, portanto, tornar-se imbatíveis globalmente — não fosse a precariedade da infra-estrutura do país. Uma empresa como a Aracruz, que exporta 99% de sua produção de celulose, teve de construir o porto pelo qual escoa sua produção para o exterior e asfaltar os 44 quilômetros de estrada que o conectam à rodovia estadual. “Meu mercado não depende do Brasil, mas meus custos sim”, afirma Carlos Aguiar, presidente da Aracruz. Um setor que se tornou líder mundial em exportação, o de carne bovina, convive com indefinições. O país está fora de 55% do mercado internacional por não ter acesso aos maiores consumidores. “Nos últimos três anos, as empresas do setor expandiram os negócios buscando consumidores alternativos, mas para manter o crescimento daqui em diante precisaremos ingressar em mercados maiores, que pagam preços melhores, como Estados Unidos, Japão e Coréia do Sul”, diz o ex-ministro Marcus Vinicius Pratini de Moraes, presidente da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carne. “Nosso ingresso nesses mercados depende de uma ação mais agressiva do governo, desvinculada de questões ideológicas, para fechar acordos comerciais.”

Por situações como essa, as opções escolhidas por Brasília podem fazer a diferença nas decisões das empresas e impulsionar — ou desestimular — estratégias de negócios que, conjuntamente, no final das contas, produzirão maior ou menor crescimento do país. Em seu primeiro pronunciamento oficial à nação, Lula fez o discurso do desenvolvimento e disse contar com o apoio das diversas forças políticas para que reformas, como a tributária e a política, finalmente saiam do papel. “Podemos andar mais rápido. Há muitos projetos engavetados à espera de indicações de melhoria do país”, diz Roriz Coelho, da Suzano Petroquímica. Há quem aposte no aprendizado do governo Lula. “O presidente Lula e boa parte do PT aprenderam bastante nesses quatro anos”, diz o economista Raul Velloso, especialista em finanças públicas. Exemplo disso ocorreu com a ministra Dilma Rousseff, da Casa Civil, que declarou ter se arrependido da briga com o então ministro da Fazenda, Antonio Palocci, em novembro do ano passado, na questão do ajuste fiscal. Muito cobrada pelo baixo nível de investimento do país em infra-estrutura, Dilma –­ um dos nomes certos, e dos mais poderosos, do novo governo Lula — agora reconhece que não há como expandir investimentos sem corte de gastos correntes do governo.

Mais dinheiro na bolsa

O volume médio diário de negócios na Bovespa tende a crescer

(em milhões de dólares)

2002 198

2003 272

2004 420

2005 667

2006 1069(1)

2007 1340(2)

(1) Até o dia 23 de outubro (2) Previsão

Fontes: Bovespa e Banco UBS

Mas há uma enorme distância entre admitir a existência do problema e efetivamente ter disposição para controlar a gastança. Ainda é cedo para dizer qual é a real vontade do governo para apertar a política fiscal. Por ora, o único a ser um pouco menos vago no tema foi o ministro Mantega, que sugeriu gradual redução de até 0,2 ponto percentual no gasto corrente como proporção do PIB a cada ano. Tamanha timidez do próprio titular da Fazenda parece recomendar cautela quanto às chances de uma guinada positiva na economia. Por ora, a maioria das apostas é de continuidade do cenário econômico atual — inflação sob controle, juros declinantes e crescimento medíocre, pouco maior do que os 3% esperados para 2006. “Sem reformas estruturais é impossível crescer mais de 4%”, afirma Sérgio Werlang, diretor executivo do banco Itaú. Some-se a esse cenário a perspectiva de certa desaceleração internacional, puxada sobretudo pelo menor crescimento americano. “Será mais do mesmo”, diz Horácio Lafer Piva, presidente da Associação Brasileira de Celulose e Papel e acionista da Klabin. “Teremos um crescimento débil, abaixo da média mundial.” O que poderia mudar o quadro de morosidade seria uma surpresa positiva no front externo, que realimente a demanda por produtos brasileiros, como minérios, alimentos e manufaturados, ou uma súbita injeção de racionalidade na Esplanada dos Ministérios. Como não dá para fazer nada quanto ao que ocorre fora das fronteiras nacionais, as esperanças recaem sobre o presidente. “Temos de lembrar que Lula é pragmático”, afirma Piva. “Ele quer deixar a marca do crescimento no seu governo, e, para isso, poderá acabar promovendo algumas reformas na área previdenciária, abrir mais concessões de estradas, destravar as PPPs e outras medidas progressistas.” Não custa nada torcer.