“Estamos numa situação catastrófica em termos de câmbio, a cada dia que passa o desastre se aproxima mais depressa”
O ex-embaixador Rubens Ricupero, de 71 anos, negociador experiente em missões diplomáticas brasileiras nos anos 80 e 90, acredita que o maior desafio do comércio exterior brasileiro não estava em Genebra, mas bem aqui em solo nacional, na atual política cambial, que penaliza fortemente as exportações e pode conduzir o País ao colapso na balança comercial. Além da valorização do real, Ricupero prevê um período de relativa estagnação dos acordos bilateriais do Brasil no âmbito do Mercosul, devido à s diferenças entre a pauta brasileira e a de seus parceiros, especialmente a Argentina.
Gazeta Mercantil – Como o senhor analisa o fracasso da rodada Doha?
Todos perdem. Ãndia e China, que bloquearam um avanço em agricultura, vão enfrentar uma atitude geral muito mais difícil em relação a concessões. O Brasil sai perdendo ainda mais, porque com interesse genuíno na agricultura, chegou a fazer grande sacrifício para viabilizar o acordo. A OMC sai bastante enfraquecida, o que não é do interesse de ninguém, pois é o único fórum de 153 países. O Brasil nunca teria ganho o caso do algodão contra os EUA ou o açúcar contra a UE se não houvesse um sistema do tipo da OMC.
Gazeta Mercantil – Agora, para o Brasil, a melhor alternativa é buscar acordos bilaterais?
Não acredito muito na existência de boas alternativas nem na multiplicação de acordos bilaterais. Os acordos vão continuar a ser tão difíceis como eram na OMC. Isto varia de país para país, mas no caso do Brasil, cujo interesse maior se concentra na agricultura, o fato de ser na OMC ou bilateral não vai alterar muito. Por exemplo, o Brasil não vai conseguir acesso mais fácil para os produtos agrícolas nos mercados da Ãndia e da China numa negociação bilateral. Estes países já mostraram claramente que não querem se abrir a uma competição além de níveis muito modestos. Também será muito difícil com os Estados Unidos e Europa, com os quais já estávamos negociando há muitos anos sem que tivesse havido muito avanço.
Gazeta Mercantil – Como devem ser os acordos no pós-Doha?
A posição brasileira fez com o que o país pudesse ser um pouco credor porque teve uma posição muito favorável, o fracasso não foi por nossa culpa e isto pode levar a alguma possibilidade de acordos estritos, concentrados em determinados produtos. Por exemplo, o caso do etanol. Estávamos negociando cotas com a Europa, havia até uma boa perspectiva. Acredito em acordos pontuais, específicos, não grandes acordos, de tipo acordo de comércio, porque aí o Brasil tem uma situação muito difícil por causa do Mercosul.
Gazeta Mercantil – Acordos bilateriais são viáveis com a proteção da Argentina ao setor industrial?
A rigor, pelo Mercosul, acordos bilaterais não são viáveis. O Mercosul é uma união aduaneira, algo muito mais ambicioso do que um acordo de livre comércio, porque na união aduaneira exige-se uma tarifa externa comum. O Brasil só poderia negociar com Argentina, Uruguai, Paraguai, porque todos têm de concordar. Não podemos dar uma concessão aos americanos em matéria eletrônica que não seja acompanhada pelos outros, isso fura a tarifa externa comum. Para poder negociar, é inevitável que se negocie em bloco, como estava se fazendo com a UE.
Gazeta Mercantil – Acredita que o Brasil vai buscar as negociações com mais ênfase?
A única alternativa seria ou os parceiros do Mercosul acompanharem este desejo de uma abertura e aí o problema maior seria a Argentina por causa da proteção do setor industrial. O que deduzo em relação à s declarações e à tendência conciliadora em relação à Venezuela é que não vai acontecer grande coisa. O governo deve procurar uma ou outra coisa, pode ser, uma cota para etanol, é possível. O Brasil já tem cotas de carne na UE, mas uma negociação abrangente, com um universo grande de produtos, que nós façamos concessões que, por exemplo, a Argentina não faça, eu não vejo isto acontecer.
Gazeta Mercantil – Qual seria uma boa estratégia daqui para a frente?
Para o Brasil não há uma solução, uma bala que mata o tigre, vai ter que somar. Por isso duvido muito da possibilidade de grandes negociações e de acordo de livre-comércio. Não acredito que o Brasil, sobretudo este governo que está no fim, vá romper com o Mercosul.
Gazeta Mercantil – Doha está sepultada?
Não, Doha não está encerrada. O que aconteceu agora não é sem precedente. Na rodada Uruguai houve um colapso igual, na conferência de Bruxelas, em 1990, que deveria ter terminado a rodada. Chegamos ao fim sem nenhum acordo, por causa da agricultura. A UE não quis fazer concessões, o Brasil e a Argentina e vários outros países latino-americanos não aceitaram que se avançasse em outras áreas e ela terminou sem nenhuma previsão de como retomaria. Na época eu era presidente do Conselho do GATT, e no ano seguinte fui eleito das partes contratantes do GATT. Quando voltamos para Genebra, ninguém sabia como retomar a coisa, na rodada Uruguai havia 15 grupos de negociação e o Conselho do GATT então me pediu formalmente para eu reorganizasse os grupos. Fiz conselhos e reduzi para algo perto de sete grupos, escolhemos novos presidentes e, aos poucos, as reuniões começaram de novo. Mas a rodada praticamente não avançou por dois anos. Retomada, até terminou bem alto com nível bem ambicioso de resultados. Agora não sei quanto tempo deve se passar até a próxima, mas não será imediata. Acredito que antes das eleições americanas e indianas vai ser difícil. Provável algo em 2010, 2011.
Gazeta Mercantil – Como fica o comércio exterior brasileiro?
A curto prazo não muda nada. Os efeitos de Doha só se concretizariam em 2013, 2014.
Gazeta Mercantil – Como devem se comportar as exportações neste segundo semestre, frente à continuidade da desvalorização do dólar?
O câmbio é incomparavelmente mais importante do que qualquer negociação comercial. Se for desfavorável, como é o nosso, mesmo que se abra oportunidades com as negociações, o câmbio vai impedir de aproveitar as oportunidades porque não dá preço. Para ter êxito com as exportações, um país precisa ter, por ordem de hierarquia: taxa de câmbio, ligeiramente desvalorizada, oferta diversificada em produtos e preços e oportunidades abertas pelas negociações. Se não há nem taxa de câmbio, nem oferta – afinal, pelo câmbio estamos cada vez mais exportando um grupo pequeno de produtos – não há acordo que possa salvar. Estamos numa situação catastrófica em termos de câmbio, a cada dia que passa o desastre se aproxima mais depressa. Para isto, as negociações não ajudam em nada.
Gazeta Mercantil – Por que o real, entre todas as moedas, foi a que mais se valorizou em relação ao dólar?
Por duas razões. De um lado, os juros, que aqui estão muito altos e atraem capital de fora que vem para ganhos a curto prazo. De outro lado, devido a esta política do Banco Central de estímulo à entrada de recursos, mesmo os especulativos de curto prazo. Assim aumenta a oferta de dólar, que fica mais barato e o real, mais caro. Isto está liquidando o comércio exterior brasileiro. O câmbio é o problema mais grave que o País enfrenta.
Gazeta Mercantil – Como vê os benefícios para o mercado interno?
O governo faz com a intenção de segurar a inflação aqui dentro. Mas provocará uma grande crise nas contas externas e, em algum momento, vai ter um ajuste que vai ser duro. O déficit em conta corrente vai crescer e pode ser estes capitais que estão entrando se assustem com o tamanho do déficit e comecem a sair, como aconteceu nos anos 90, antes da crise de 1998.
Gazeta Mercantil – E como se resolveria a questão?
Deveria haver controle de capitais. O Brasil deveria promover, através do aumento de impostos, o desestímulo ao ingresso de capitais especulativos de curto prazo. Acho que isto é fácil de fazer porque os instrumentos existem, não dependem de lei. Já que o governo gosta tanto de aumentar imposto, bastaria taxar os capitais especulativos estrangeiros. Mas isto a ortodoxia do Banco Central não permite nem discutir. A solução é esta, taxar fortemente o capital especulativo.
Gazeta Mercantil – Existe um patamar “ideal” na cotação tanto para ajudar no combate à inflação quanto para não prejudicar demais os exportadores?
É impossível citar um número definitivo. O problema é que o Brasil não usa esta possibilidade.
Gazeta Mercantil – Neste cenário, quem perde mais?
O comércio exterior, sobretudo os exportadores. Em geral, os produtos agrícolas que têm sua remuneração diminuída. Também a indústria, que sofre impacto mais direto porque já está sofrendo cada vez mais o ingresso do produto chinês, ou americano. Em algum momento esta dinâmica vai provocar aumento de desemprego.
Gazeta Mercantil – Como avalia a política de aumento da taxa Selic pelo Copom no combate à inflação?
O Copom está com a sensação de que está sozinho, que o resto do governo não está fazendo o que devia. De fato, este governo inchou a folha de pagamento, tem dado aumentos muitos grandes, aumentado os gastos correntes. A política monetária tenta segurar a inflação mas é anulada pela expansão contínua dos gastos do governo e pelo estímulo ao consumo.
Gazeta Mercantil – A balança comercial sustentada pelas commodities é perigosa?
É perigoso sim. Não há mal nenhum em ter uma excelente posição competitiva em commodities. Países como Austrália, Japão e Canadá também têm. Mas é preciso que não sejam só commodities, que elas alavanquem setores com maior valor agregado, sobretudo a indústria. Por causa do câmbio, o Brasil caminha para uma situação na qual sua competitividade depende de um número cada vez menor de produtos. E, no longo prazo, nem as commodities agüentam este câmbio.
(Gazeta Mercantil/Caderno A – Pág. 12)(Leda Rosa)