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O gigante adormecido no canavial

“A partir de 2010, ou seja, dentro de quatro ou cinco anos, cerca de 50 milhões de indivíduos em todo o mundo poderão ser expulsos de suas casas anualmente” (50 milhões é a população do Cone Sul: Argentina, Chile, Paraguai e Uruguai), afirmam os cientistas da Universidade da ONU, em Bonn, Alemanha, “se nada for feito para aliviar o impacto de desastres naturais”. E esse número continuará crescendo.

Europeus e americanos acertam ao desconsiderar nossa capacidade na área tecnológica, pois têm por aliado a asnice brasileira

De 1970 até hoje, os prejuízos materiais devido a anomalias climáticas e a emergências relacionadas à água -e que decorrem do aquecimento global- aumentaram por um fator de seis.

Acontecimentos extremos aumentaram em freqüência, no mesmo período, entre 2,5 e três vezes, mostram as estatísticas. E, como o aquecimento global tende a crescer exponencialmente devido a vários esquemas de realimentação positiva, podemos imaginar o que a humanidade enfrentará já nos próximos dois ou três decênios se emissões de gases de efeito estufa não forem reduzidas.

Pois bem, especialistas estão convencidos de que a forma mais barata e eficiente de combater o efeito estufa é a substituição de combustíveis fósseis por biocombustíveis, associada a técnica de conservação. É a hora e a vez do Brasil, concluímos, rejubilantes. Uma avaliação preliminar elaborada por um grupo de especialistas atuando na Unicamp (Núcleo de Planejamento Energético) identificou um total de cerca de 250 milhões de hectares de terras férteis com pluviometria favorável, inclinação adequada para mecanização, logística satisfatória, baixo impacto ambiental e desimpedidas legalmente para o plantio de cana-de-açúcar. Essas áreas estão distribuídas por quase todos os Estados, com exceção daqueles inteiramente ocupados pela floresta amazônica.

O nível de solaridade e a regularidade pluviométrica são tais que não há na Terra cultivo de biomassa com produtividade comparável à do território brasileiro. Com isso, dormimos em berço esplêndido arejados pelo sucesso do Pró-Álcool, até agora o único programa do mundo de inquestionável sucesso na área de biomassa para fins energéticos. O programa congênere americano, baseado no milho e de dimensões um pouco menores, é tão altamente subsidiado que, se o governo daquele país comprasse o álcool no Brasil e o distribuísse de graça, ainda economizaria.

Tudo parece estar a nosso favor. Com um melhor aproveitamento do bagaço e da palha, o Brasil poderia substituir com álcool toda a produção de petróleo do Oriente Médio, usando apenas as áreas citadas acima. Não é maravilhoso?

Pois bem, a despeito dessa imensa vantagem comparativa, os prognósticos são de que o Brasil perderá em breve a sua posição hegemônica no campo da biomassa energética. E isso não é previsão de algum pessimista. Na mais prestigiosa enciclopédia de tecnologia (Landolt Börntein, Springer Pub. Co.), em capítulo a ser publicado em 2006, está a afirmação categórica de que o Brasil perderá em breve sua predominância por causa dos avanços de tecnologias de hidrólise, principalmente a enzimática.

Essa atitude é compartilhada pelos países da União Européia, como demonstram inúmeros programas no campo da biomassa.

O maior projeto atualmente em desenvolvimento, a “Viewls”, liderado pela Novem, instituição que agrega interesses privados, governos e organizações não-governamentais, pretende suprir 20% da demanda européia por combustíveis líquidos com derivados de biomassa. E os investimentos seriam realizados nos países recentemente agregados à União Européia, com o que seriam proporcionados meios para o desenvolvimento econômico desses novos membros.

Nenhum dos projetos que atualmente estão em desenvolvimento na Europa prevê investimentos fora de seu território, e essa expectativa é baseada simplesmente na convicção de que as tecnologias de hidrólise estão suficientemente maduras para que culturas diversas que, até recentemente, eram rejeitadas para a produção de combustíveis líquidos, já tenham se tornado economicamente viáveis.

Todavia, muitas das vantagens competitivas características do Brasil permanecem e, presumivelmente, o desenvolvimento dessas tecnologias de hidrólise, aplicáveis à cana-de-açúcar -o que pode aumentar significativamente a produtividade atual-, manteria a atual posição brasileira de atratividade econômica.

Pois bem, percebendo a importância econômica da hidrólise enzimática, um grupo de 120 pesquisadores distribuídos por todo o território nacional apresentou ao CNPq uma proposta para a constituição de um Instituto do Milênio, o que permitiria a aproximação mútua e a concentração desses pesquisadores em um programa de importância nacional. 28 outras propostas, certamente de importância acadêmica, foram aprovadas, mas nenhuma na área de energia.

O Brasil está, portanto, perdendo uma oportunidade excepcional de desenvolvimento econômico, de redução de diferenças regionais e de extensa criação de empregos, mas, antes de tudo, de proporcionar ao resto do mundo uma melhor qualidade de vida pela redução do aquecimento global.

Esse não é o único exemplo da falta de percepção de uma questão trágica para a humanidade que, não obstante, pode se tornar uma oportunidade sem precedentes para o desenvolvimento econômico do país.

O Centro de Tecnologia da Copersucar, que foi, no passado, responsável pelo sucesso do Pró-Álcool, e que teve no seu apogeu cerca de 1.800 funcionários, está hoje reduzido a cerca de 10% desse número e foi transferido para uma associação de produtores. Como se vê, não apenas governos são insensíveis e imediatistas no que diz respeito à pesquisa mas também a iniciativa privada. O tradicional Instituto Agronômico de Campinas, ligado à Secretaria de Agricultura do Estado de São Paulo, é levado à inanição por salários paupérrimos, e a Embrapa se ocupa minimamente da biomassa energética.

Europeus e americanos têm, portanto, razão em desconsiderar a capacidade brasileira no campo tecnológico, pois contam com um aliado infalível, a asnice brasileira, mãe do gigante eternamente adormecido.