Mercado

O etanol e a morte por extenuação

Recomenda-se um pouco menos de entusiasmo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, na sua cruzada para transformar o país no império do etanol. No dia 20 de março último, em Mineiros, discursou o presidente: “Os usineiros de cana, que há dez anos eram tidos como se fossem os bandidos do agronegócio neste país, estão virando heróis nacionais e mundiais, porque todo mundo está de olho no álcool. E por quê? Porque têm políticas sérias. E têm políticas sérias porque quando a gente quer ganhar o mercado externo, nós temos que ser mais sérios, porque nós temos que garantir para eles (sic) o atendimento ao suprimento.” Menos, presidente. Muito menos. Essa frase, lembrada na semana em que se comemorou o primeiro de maio, pega ainda mais no estômago.

Primeiro, porque os heróis, do ponto de vista do Estado, não são tão exemplares assim. Segundo Alexandre Conceição, membro da direção estadual do MST de Pernambuco, em artigo escrito em 10 de abril deste ano e publicado em vários sites, apenas em Pernambuco as usinas e destilarias devem ao INSS mais de R$ 562 bilhões. Do ponto de vista das relações trabalhistas, um presidente cuja liderança foi forjada no movimento sindical deveria ter mais cuidado ainda.

A relação do produtor de cana-de-açúcar com o cortador, mesmo com todos os avanços tecnológicos, não sofreu grandes alterações nos últimos séculos – nem em São Paulo, o Estado mais rico da federação. Segundo a socióloga Maria Aparecida de Moraes Silva – que há 30 anos desenvolve pesquisas sobre trabalho rural na região de Ribeirão Preto -, em entrevista à Revista do Instituto Humanitas Unisinos, a exigência de maior produtividade por trabalhador (hoje ela é de corte de 10 toneladas por dia) encurtou o ciclo de vida útil do trabalhador da cana para 12 anos, equiparado-o com o dos escravos. Isto é: depois de 12 anos de trabalho nessa atividade, o homem, ou a mulher, está fisicamente impossibilitado não apenas de cortar a cana, mas para qualquer outra atividade. A tendência é piorar: este ano, começa a ser colhida a cana geneticamente modificada, que pesa menos e tem mais sacarose. Isso quer dizer que, para cumprir uma produção de 10 toneladas por dia, o trabalhador, que antes cortava 100 metros de cana para obter a meta estipulada pelo patrão, terá que cortar o triplo. Com a cana normal, segundo pesquisa do Centro de Referência do Trabalhador, o trabalhador da cana, para cortar 10 toneladas por dia, anda 9 quilômetros a pé no canavial, dá cerca de 73.260 golpes de facão, faz 36 mil flexões com as pernas e tem que levantar 800 montes de 15 quilos cada e levar, um a um, por três metros, para empilhar a sua produção do dia. Segundo o Ministério da Saúde, ele chega a perder oito litros de água por dia em uma jornada de trabalho que, não raro, ultrapassa dez horas. Além disso, a cana cortada manualmente exige uma queimada prévia, com inevitáveis consequências para o aparelho respiratório do trabalhador. Doenças crônicas são comuns depois de algum tempo de atividade – mas o que mais horroriza é que o corte da cana ainda é capaz de produzir mortes por extenuação. No ano passado, 17 foram registradas no Estado de São Paulo. Ou seja, 17 trabalhadores no corte de cana morreram de tanto trabalhar.

A cultura da cana-de-açúcar, mesmo com todos os avanços tecnológicos, não mudou muito. Em São Paulo, com um sindicato mais organizado, os cortadores de cana são registrados, em sua maioria. Mas isso não é garantia de qualidade de vida e no trabalho. Segundo a especialista, esses trabalhadores que vêm para a rica região de Ribeirão Preto, por exemplo, arregimentados por “gatos” (pasmem, eles ainda existem) no Maranhão, Piauí, Paraíba, Ceará, Pernambuco, Rio Grande do Norte e norte de Minas Gerais, mesmo se estiverem registrados, são submetidos à obrigação de colheita mínima de 10 toneladas por dia, sob pena de demissão.

As relações de trabalho nas usinas nada mudaram

No ano passado, apenas em São Paulo os migrantes nordestinos que vieram colher cana chegaram a 200 mil. Em todo o país, a Pastoral do Migrante calcula que pelo menos 1 milhão de trabalhadores, em sua maioria nordestinos, se dediquem a essa atividade em todo o país na época da colheita. Na maioria das vezes, em condições piores do que em São Paulo. No Mato Grosso, por exemplo, o Ministério Público do Trabalho, de 1995 a 2006, instaurou 41 procedimentos para investigar denúncias de trabalho escravo em usinas de álcool. Atualmente, as 10 usinas do Estado estão sob investigação.

Existem várias razões pelas quais o presidente Luiz Inácio Lula da Silva deve promover um grande debate antes de incentivar os produtores agrícolas a investir na produção de cana-de-açúcar: como no Brasil Colônia, ela favorece a concentração de terra; como sempre, cana-de-açúcar e monocultura são quase irmãs siamesas. E, o pior, as relações de trabalho pouco mudaram. A extensão da cultura da cana aumentou o número de empregos no campo, mas a um preço muito alto. Se disseminar a mecanização da colheita, esses empregos vão para o espaço; se virar monocultura, enterra qualquer chance de emprego em outro tipo de atividade agrícola.

Um novo ciclo de monocultura da cana-de-açúcar pode ser favorável, diante do cenário internacional. Mas a prosperidade que advier dela não pode ser obtida às custas do trabalho insano desses escravos pós-modernos. Nem o país pode pagar os preços que pagou pela decadência de outros ciclos igualmente concentrados na monocultura.