A viagem que o presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, fará nesta semana a cinco países da América Latina se inscreve num esforço diplomático tardio e quase inócuo. Mas seu efeito colateral não pode ser desprezado. Antes de recuperar sua imagem, Bush quer deter a crescente influência do venezuelano Hugo Chávez — considerado pelos EUA uma ameaça à estabilidade regional. Assessores do governo e institutos de pesquisa norte-americanos têm orientado Washington a se aproximar dos parceiros que lhe restaram, para daí barganhar apoios que enfraqueçam Caracas. Mas a miopia da diplomacia americana acaba por alimentar antagonismos, e mina o já combalido projeto de integração sul-americana.

Basta olhar para as reações dentro do Mercosul. Chávez articulou com o presidente argentino, Néstor Kirchner, um encontro bilateral em Buenos Aires, onde vão liderar um ato público de repúdio a Bush durante sua passagem pela região. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva não gostou, e pediu “moderação” ao colega venezuelano. Lula se reunirá com Bush na quinta-feira em São Paulo, onde assinarão acordos para a promoção do etanol. Em 31 de março, o brasileiro se tornará o primeiro chefe de Estado latino-americano a ser recebido na residência de descanso do presidente americano em Camp David (Maryland).

Uruguai

Quem também não gostou foi o líder uruguaio Tabaré Vásquez, que receberá Bush e sua comitiva na sexta-feira. Montevidéu acaba de assinar um acordo de comércio e investimentos com os EUA, e quer tentar um Tratado de Livre Comércio (TLC) em breve. Insatisfeito com o tratamento assimétrico dentro do Mercosul, Vázquez aposta num novo projeto político, que significaria sua saída do bloco e o alinhamento com Washington. Tal postura não deve ajudar as já estremecidas relações bilaterais com a Argentina, que faz movimento inverso. Dá as costas ao antigo parceiro do Norte, com quem manteve “relações carnais” na década de 90, e cola na Venezuela.

Na semana passada, Kirchner abandonou a timidez e se declarou a favor do aprofundamento da parceria com Chávez, que já comprou mais de US$ 3 bilhões em títulos da dívida argentina. Uma perda importante para os EUA, segundo o cientista político boliviano Eduardo Gamarra, membro do Council of Foreign Relations (em Washington) — um dos mais prestigiados centros de estudos norte-americanos. Em relatório publicado neste mês, ele cita Argentina, Chile e Brasil como países estratégicos para mediar uma aproximação com o governo de Evo Morales e afastar a Bolívia da influência chavista. “A necessidade de um intercâmbio regional mais amplo é urgente, e os EUA podem ter um papel importante para iniciar esse processo”, afirma Gamarra.

Sem a Argentina como aliada, a aproximação com o Uruguai ganha novo status. Mas a lua-de-mel com Washington não está seduzindo toda a sociedade uruguaia, que esperava uma postura diferente de um governo socialista. Em Montevidéu, também está sendo organizado um ato contra a visita de Bush, para o qual foram convidados os piqueteiros argentinos que têm realizado constantes bloqueios de pontes na fronteira, em protesto pela instalação da fábrica de celulose da companhia filandesa Botnia no lado uruguaio. Irma Leites, membro da denominada Coordenação Antiimperialista, disse que a presença dos piqueteiros serve para enviar um sinal contra os EUA e “as multinacionais”.

Racha

O Itamaraty descarta o risco de um racha no Mercosul e procura minimizar o efeito do antiamericanismo. “É naturalmente possível conviver com essas diferenças. Existe uma distância entre ideologia e negócios”, avalia um diplomata. Para ele, as demonstrações dos países vizinhos contra a visita de Bush devem pôr um fim às acusações feitas pelo ex-embaixador Roberto Abdenur, que afirmou existirem “ranços antiamericanistas” na política externa do governo Lula. Depois de passar por Brasil e Uruguai, a comitiva de Bush segue para Bogotá, Cidade do México e Cidade da Guatemala. Serão visitas de forte caráter simbólico a governos que ainda mantêm uma agenda comum com Washington.

SEGURANÇA REFORÇADA

A visita do presidente dos EUA, George W. Bush, mobiliza um aparato de segurança jamais visto no Brasil. Preocupado com ataques terroristas, o governo norte-americano monitora há dois meses os preços de armas e explosivos no mercado negro brasileiro. Centenas de agentes acompanham o tráfego aéreo em São Paulo, além de ações de entidades como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem- Terra. A Polícia Federal mobilizará um número de agentes que supera, e muito, o contingente destacado para outros presidentes em visita ao Brasil. A decisão sobre em qual hotel Bush ficará hospedado será tomada horas antes de sua chegada ao país. Hilton, Grand Hyatt ou World Trade Center devem ser fechados.

Agenda agrada aos brasileiros

A parceria entre Brasil e Estados Unidos para impulsionar a pesquisa, a produção e o comércio do etanol significa uma vitória do governo Lula, que, dessa forma, consegue impor sua agenda bioenergética à região. Seja qual for o resultado concreto do acordo que será assinado durante a visita de George W. Bush a São Paulo, o fato é que a atenção dedicada por Washington superou as expectativas da diplomacia brasileira. De fato, o tema foi alçado ao topo da agenda regional. A Organização dos Estados Americanos (OEA) já anunciou que o etanol está entre as metas da cúpula de junho, num movimento que busca envolver os demais países do continente.

Bush estaria disposto a gastar US$ 15 milhões no programa de cooperação em etanol, e como parceiros estratégicos indicou Peru, Colômbia, Honduras, Guatemala, São Cristóvão e Nevis, República Dominicana e Haiti. Este último a pedido do Itamaraty, considerando o engajamento do Brasil na reconstrução e desenvolvimento daquele país. Apesar de circularem boatos sobre a criação de uma “Opep do etanol” — em referência à Organização dos Países Exportadores de Petróleo —, o objetivo do governo Lula é transformar o combustível numa commodity energética, e para tanto é preciso criar mercado.

Como explicou ao Correio o ministro Antônio José Ferreira Simões, chefe do Departamento de Energia do Itamaraty, “o importante é que muitos países possam vender também”. Entre os países que já possuem programas de etanol, além de Brasil e EUA, ele cita Canadá, França, Espanha, África do Sul, Nigéria — que está montando um projeto com o apoio da Petrobras —, Austrália e Tailândia, além das negociações com Japão. “Nós não teríamos capacidade de produzir para atender toda a demanda.”