“Não há dúvida alguma de que o álcool será o combustível do futuro”. Essa assertiva tem sido tão repetida por respeitadas lideranças do empresariado brasileiro, que até pode parecer temerário colocá-la em dúvida. No entanto, é preciso lembrar do sábio conselho de Romain Rolland (1866-1944) sobre a necessidade de jamais desligar o otimismo da vontade do ceticismo da razão. No caso dos combustíveis, tudo depende do que se entenda por “futuro”.
Com certeza, o número de veículos tenderá a triplicar até meados deste século, sendo que atualmente 97% do combustível usado no transporte vêm do petróleo. E já começou o ocaso da era das energias fósseis, devido aos drásticos efeitos de uma tripla conspiração: alta dos preços motivada por crescentes custos de extração; mais que tardia mudança de atitude dos EUA sobre sua segurança energética; e mudança de comportamento da comunidade internacional sobre o combate ao aquecimento global.
Também é verdade que nada poderá ser mais racional em tais circunstâncias do que simultaneamente melhorar a eficiência dos motores movidos a gasolina e diesel, e batizá-los o máximo possível com aditivos provenientes da biomassa. Será fundamental que o álcool anidro substitua pelo menos 10% de toda a gasolina a ser consumida no mundo em 2025.
Então, para quem por “futuro” entende dois decênios, realmente “não há dúvida alguma de que o álcool será o combustível do futuro”. O que não é seguro, contudo, é que durante esse período não comece a emergir alguma inovação radical que dê aos atuais motores de automóveis, ônibus, caminhões e tratores o mesmo destino reservado à tração animal a partir do momento em que se viabilizaram. Para obter uma verdadeira ruptura com a atual dependência dos fósseis, o sistema de transporte certamente adotará veículos com as chamadas células, ou pilhas, a combustível, que combinam o hidrogênio com o oxigênio do ar para gerar energia e acionar motores elétricos. Além de se tornarem muito mais eficientes que os motores atuais, sua única emissão será de vapor d´água.
O interesse no hidrogênio está sendo causado menos por seus benefícios ambientais do que por seu potencial para estimular inovações e novos mercados
O hidrogênio poderá ser produzido sem adicionar nenhum gás de efeito estufa à atmosfera. A energia necessária para obtê-lo a partir da eletrólise (uso da eletricidade para transformar água em hidrogênio e oxigênio) virá de células solares, turbinas eólicas, usinas hidrelétricas ou instalações geotérmicas. E também se poderá extrair hidrogênio de fósseis, como o gás natural e o carvão mineral, desde que os subprodutos de carbono sejam capturados e armazenados no subsolo.
Claro, sérios obstáculos precisarão ser vencidos para que aumentem as apostas nessa possível “revolução do hidrogênio”, título de um prudente livro de Stephen Boucher, coordenador do “Notre Europe”, o influente “think tank” fundado por Jacques Delors (Paris: Ed. du Félin, 2006). Por enquanto só se tornaram realmente viáveis as aplicações de caráter estacionário, como o fornecimento de energia a operações militares, a situações que exijam alimentação sem interrupção (ASI), como é o caso dos sistemas bancários, e aplicações bem especializadas, como grupos de socorro. Mas as células a combustível logo serão competitivas em esquemas de cogeração para residências, em seguida na produção de eletricidade em zonas urbanas, e – talvez ao mesmo tempo – no amplo mercado dos eletrônicos portáteis, como os notebooks.
O setor de transportes dificilmente será atingido antes dos anos 2020. Mas, quando as atuais pesquisas ingressarem em sua fase propriamente industrial, ficarão bem claras as vantagens de uma coevolução do hidrogênio com os demais vetores energéticos em uso, basicamente a eletricidade e os combustíveis líquidos provenientes da biomassa. Ora, alguns leitores poderão achar, então, que está certo afirmar que o álcool será “o combustível do futuro”, pois este continuará necessário mesmo quando, ocorrer essa profetizada “revolução do hidrogênio”. Leitores que devem ser convidados a comparar os impactos estruturais que terão esses dois vetores sobre as indústrias de veículos.
Não é por acaso que, nos últimos anos, duas dezenas de países anunciaram caríssimos programas nacionais para desenvolver a tecnologia necessária à utilização do hidrogênio. A maioria das montadoras já construiu protótipos, e já investiu centenas de milhões de dólares em pesquisa e desenvolvimento. Honda, Toyota e GM já anunciaram planos de comercializar veículos com células a combustível em algum momento entre 2010 e 2020. O mais provável, contudo, é que seja necessário esperar até 2030 para que a demanda de veículos a hidrogênio se torne significativa. Empresas petrolíferas trabalham com alguns governos para introduzir as primeiras frotas, além de pequenas redes de reabastecimento na América do Norte, Europa e China.
Esse aumento do interesse no hidrogênio está sendo causado menos por seus óbvios benefícios ambientais do que por seu potencial para estimular inovações e surgimento de novas atividades produtivas e de novos mercados. E é nisto que deve se basear qualquer prognóstico sobre qual será “o combustível do futuro”. Enquanto tal interesse não puder gerar esses impactos, todo e qualquer combustível proveniente da biomassa dará inegáveis vantagens comparativas a países tropicais, mesmo com o advento da produção de etanol celulósico. É difícil supor, contudo, que o núcleo orgânico da economia mundial prefira se acomodar a tal situação, em vez de realmente revolucionar sua base técnica.
A rigor, o hidrogênio se tornará competitivo em relação à gasolina tão logo haja um amplo sistema de distribuição. Mas seu custo será superior na fase de transição. E será exatamente esse o intervalo a ser preenchido pelo atual ciclo favorável ao etanol, ao biodiesel, e ao H-Bio. Depois, inovações radicais resultantes dos atuais investimentos em pesquisa, farão com que vantagens competitivas dos países mais industrializados ultrapassem em muito as eventuais vantagens comparativas sobreviventes na periferia.
José Eli da Veiga , professor titular do departamento de economia da FEA/USP e coordenador de seu Núcleo de Economia Socioambiental (NESA), escreve mensalmente às terças. Página web: www.zeeli.pro.br