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O canavial do século 21

Entre os anos de 1932 e 1943, o escritor paraibano José Lins do Rego publicou uma série de seis livros, entre eles o clássico Fogo Morto, que ficou conhecida como “o ciclo da cana-de-açúcar”. Nas obras, Lins do Rego retrata um sistema econômico marcado pelo patriarcalismo, pela exploração do trabalho semiescravo e pela ineficiência produtiva. Passados mais de 60 anos da publicação da série, essa imagem ainda paira sobre o setor sucroalcooleiro brasileiro – principalmente no exterior. No mês passado, a revista alemã Der Spiegel publicou uma reportagem sobre o tema. Com o título O Alto Preço do Etanol Limpo e Barato, o texto descreve a duríssima realidade dos trabalhadores dos canaviais na Zona da Mata pernambucana. Em meio a fotos chocantes de queimadas nos canaviais, crianças esquálidas e trabalhadores sem camisa e calçados com chinelos de dedo, não faltam referências aos “barões da cana” e às “gangues de feitores”. “Muitos dos trabalhadores sofrem tanto quanto seus ancestrais que foram escravos nessas mesmas plantações”, afirma Der Spiegel. Relatos desse tipo – precisos ou não – são um golpe duro para uma indústria que quer se firmar como alternativa global ao petróleo. “Não há como negar que o setor ainda tem um passivo grande”, diz a economista Clarissa Lins, diretora executiva da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável e autora de um estudo sobre o assunto. “Mas já existem muitas usinas no Brasil com elevados níveis de mecanização e profissionalismo. O maior desafio agora é avançar ainda mais.”

Pois na cidade de Mineiros, no interior de Goiás, está nascendo uma empresa que promete inaugurar uma nova maneira de produzir etanol no Brasil. Trata-se da Brenco, sigla em inglês para Companhia Brasileira de Energia Renovável, que nas próximas semanas começa sua primeira colheita de cana-de-açúcar. Quando foi anunciada, nos idos de 2007, a Brenco chamou muita atenção pelos nomes que estavam envolvidos em sua criação. A empresa tem entre seus investidores, reunidos pelo empresário Ricardo Semler, da Semco, o fundador da Sun Microsystems, Vinod Khosla, o ex-presidente da AOL Steve Case e o ex-presidente do Banco Mundial James Wolfensohn. Mas a lista de celebridades é apenas parte da história. O que, espera-se, seja o trunfo da Brenco é a mentalidade que ela traz para um setor que evoluiu nos últimos anos, mas que ainda convive com cenas do século 19. Questões como o rígido cumprimento da legislação trabalhista, a segurança dos trabalhadores e o respeito ao meio ambiente (veja quadro na pág. 42) são tratadas na Brenco como valores intrínsecos do negócio. “A maior parte das usinas só começou a pensar em sustentabilidade mais recentemente. Empreendimentos novos, como a Brenco, já nascem com essa preocupação, até por exigência dos investidores e dos mercados consumidores”, diz o ex-ministro da Agricultura e consultor Roberto Rodrigues.

Uma visita aos canaviais de Mineiros dá uma ideia de como a Brenco tem evitado, a todo custo, o estigma que ainda assombra o setor. Boa parte do processo de plantio e toda a colheita são mecanizadas, o que elimina problemas crônicos da indústria sucroalcooleira, como as queimadas. Os funcionários dormem em alojamentos semelhantes aos utilizados pelo Exército americano no Iraque. Não chega a ser o Ritz, mas foram feitos para seres humanos. A empresa oferece serviço de alimentação, plano de saúde e salário em média 20% superior ao do mercado. Além disso, todos os funcionários são avaliados de acordo com metas estabelecidas pela direção da companhia, recebendo bônus quando atingem ou superam os objetivos – uma realidade que não é diferente da que existe nas fábricas da AmBev ou nas ferrovias da ALL, duas empresas com forte cultura meritocrática. “A gente pensa o negócio como uma operação industrial”, diz o ex-presidente da Petrobras Henri Philippe Reichstul, no comando da Brenco desde 2006, quando a companhia era ainda um plano de negócios. As condições de trabalho nas lavouras da Brenco atraíram profissionais que trocaram o emprego na cidade por um posto no canavial. “Aqui tenho melhores oportunidades de carreira”, diz Reila Resende de Jesus, de 26 anos, operadora de colheitadeira da Brenco, ex-caixa em uma agência do Banco do Brasil. Na empresa, ela recebe 1 100 reais, mais que o dobro do que recebia no banco.

Uma usina diferente

Produzir etanol politicamente correto não é tarefa simples, muito menos barata. Além dos gastos maiores com mão-de-obra, a implantação de um canavial como o de Mineiros custa, em média, 10% mais por hectare do que os canaviais tradicionais. A grande aposta da Brenco é que os ganhos com produtividade, trazidos pela mecanização e por outras inovações, não só compensem os investimentos como também diminuam o custo do litro do etanol em 6% em relação à média do mercado (veja quadro acima). Esse resultado depende de controle. Em seu notebook, os executivos da empresa guardam tabelas que monitoram todo tipo de estatística relacionada à operação, desde a quantidade de mudas de cana plantadas por hectare de terra até os indicadores de desenvolvimento humano das cidades onde ficarão as usinas. Na fase de plantio, nos primeiros meses de 2008, os chefes de equipe coordenaram o trabalho dos 3 500 plantadores de cana com palmtops, uma cena pouco comum nas lavouras do Brasil ou de qualquer parte do mundo. Diariamente, eles abasteciam a base de dados da Brenco com informações sobre o ritmo de cultivo e o desempenho de cada funcionário. A empresa classificou e identificou na base de dados os plantadores mais produtivos a fim de contratá-los para a próxima safra. A tentativa de profissionalizar as relações de trabalho é tão ardorosa que alguns preciosismos acontecem. Na Brenco, plantador de cana, por exemplo, não pode ser chamado de boia-fria, mas sim de “rurícola”.

O desempenho da Brenco comparado ao das demais usinas

A empresa liderada por Reichstul já nasceu com vocação para o gigantismo – isso pela simples razão de que um projeto desse porte só se torna viável se tiver grande escala. A Brenco é atualmente o maior projeto em execução no setor de açúcar e álcool no Brasil. Até 2015, quando todas as dez usinas estiverem a pleno vapor, a empresa terá capacidade de moer 44 milhões de toneladas de cana e de produzir 4 bilhões de litros de etanol por ano. Trata-se de uma quantidade assombrosa. A Cosan, maior empresa do setor, processa 39 milhões de toneladas de cana. Do total necessário para a implantação do projeto, a Brenco já captou cerca de 2 bilhões de reais. As duas primeiras usinas, localizadas em Mineiros, vão entrar em operação nos próximos meses e devem produzir cerca de 260 milhões de litros de etanol na primeira safra. As demais unidades serão instaladas em outras cinco cidades dos estados de Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, região conhecida como a nova fronteira da cana. Divididas em dois polos, as usinas terão no máximo 120 quilômetros de distância uma da outra, o que garantirá custos menores no transporte da cana e do etanol produzido. Por enquanto, o etanol deverá ser transportado por trem e caminhões até Santos, onde será embarcado para o exterior, mas a partir de 2011 a produção deverá ser escoada por um duto de mais de 1 000 quilômetros de extensão.

O mercado global de etanol

A Brenco foi gestada no auge do frisson que os biocombustíveis provocaram entre os financistas internacionais. Em sua primeira apresentação aos investidores, no segundo semestre de 2006, Reichstul exibiu 140 slides que detalhavam o funcionamento do negócio. Em um deles, havia uma previsão: até 2015, um décimo do consumo de etanol de todo o mundo sairia das usinas da Brenco. O problema é que essas previsões foram feitas em um momento de demanda aquecida e ninguém sabe, ao certo, qual será o impacto que a crise internacional e a queda no preço do petróleo terão sobre os biocombustíveis. Por enquanto, a empresa está conseguindo driblar a situação. Quando a pior fase da crise começou, a Brenco já tinha conseguido financiamento para a primeira etapa dos investimentos, em 2009 e 2010 – nos primeiros dias de outubro, o BNDES concedeu financiamento de 1,2 bilhão de reais e tornou-se sócio de 20% da empresa. “Apesar das dificuldades momentâneas, o mercado de etanol tende a crescer no futuro. Acho que ninguém duvida disso”, diz José Taragano, vice-presidente operacional da Brenco.

Isso não significa que a candidata a potência mundial do etanol esteja livre dos abalos provocados pela crise. No início de janeiro, o principal cliente da Brenco, a americana Lyondell Basell, uma das maiores petroquímicas do mundo, entrou em recuperação judicial. Mesmo com os executivos da Brenco assegurando que o contrato está mantido, ter o principal cliente em dificuldades financeiras não é uma situação confortável. Além disso, com a queda no preço do petróleo, as previsões são de que o ímpeto pelo consumo de combustíveis alternativos diminua e os cenários feitos até agora para o setor passem por uma reviravolta. Numa conversa entre amigos, ainda na fase de elaboração do projeto, Ricardo Semler dizia que a Brenco seria viável com o petróleo acima de 35 dólares. Menos que isso, seria arriscado. O preço do barril, que chegou a 150 dólares no meio do ano passado, está hoje em 40. Com esse cenário, o maior desafio da Brenco será provar que seu negócio é duplamente sustentável – no apelo ecológico e, sobretudo, no resultado.