Mercado

O álcool e a advocacia da concorrência

Após o acordo efetuado em janeiro de 2006 entre os usineiros e o governo federal para limitar em R$ 1,05 o preço do litro do combustível nas usinas, a Fundação Getúlio Vargas (FGV), em estudos de comportamento de mercado, concluiu que o aumento do combustível no trimestre chegou a 30,46%. À época em que ficou claro não ser possível por parte dos usineiros manter o preço combinado, o governo federal chegou a acenar com medidas para aumentar a oferta no mercado interno, tal como a tributação na exportação do produto. Mas a escolha adotada foi, efetivamente, a diminuição da quantidade de álcool na composição da gasolina de 25% para 20%, a fim de ampliar a oferta do produto e evitar pressão no preço.

O que se verifica no cenário descrito acima é a tentativa do Estado de interferir nas forças de mercado que determinam o preço, segundo a regra básica de oferta em relação à demanda. Não é uma tarefa simples e o risco de insucesso é considerável. Mas esse é apenas um exemplo em que política microeconômica de governo e política de concorrência se contrapõem.

O interesse público final buscado por ambas é comum, ou seja, o bem-estar social, mas o meio utilizado é completamente distinto. Se por um lado a política de concorrência visa ajustar o comportamento dos agentes de mercado para preservar o preceito constitucional da livre iniciativa e da livre concorrência, a política de governo usa dos seus inúmeros instrumentos administrativos, que vão desde a negociação direta, como no caso, até a edição de normas, visando criar situações distintas de tratamento entre esses agentes, interferindo, assim, no curso normal da economia. Enquanto aquela se pauta por análises e decisões técnicas, esta tem cunho eminentemente político.

Na época de realização do acordo entre governo e usineiros, ficou claro que as autoridades que compõem o sistema brasileiro de defesa da concorrência mal participaram do debate, o que colocou eventuais critérios técnicos de solução do problema para um segundo plano. Não que pudesse sair da ampliação desse debate uma solução milagrosa para se evitar o aumento do preço do combustível. No entanto, certamente seriam avaliados os comportamentos de mercado dos produtores, principalmente se estavam ou não exercendo seu poder dentro dos limites permitidos pela lei.

No acordo entre governo e usineiros, as autoridades do sistema de defesa da concorrência mal participaram do debate

A situação acima foi trazida para demonstrar um ponto de grande preocupação no Projeto de Lei nº 5.877, de 2005, que tem por objetivo reestruturar o sistema brasileiro de defesa da concorrência. Em breves palavras, o projeto dá um novo desenho aos três órgãos que compõem o sistema: a Secretaria de Direito Econômico (SDE) do Ministério da Justiça deixa de participar de processos administrativos relacionados à defesa da concorrência; o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) passa a ter uma superintendência geral e um departamento de estudos econômicos e seu plenário, composto por conselheiros, é convertido em tribunal; e a Secretaria de Acompanhamento Econômico (Seae) do Ministério da Fazenda passa a desempenhar a tarefa de advocacia da concorrência.

A função de advocacia da concorrência é fundamental dentro de um sistema que tem a livre concorrência e a livre iniciativa como valores constitucionais. É um dever do Estado zelar por esses valores e defender, com imunidade a quaisquer outros interesses particulares ou de governo, os ajustes necessários para que esse ambiente exista de fato e de direito.

É bem verdade que a atual legislação não cria um ambiente favorável para essa atuação administrativa. Mas o projeto de lei, ao atribuir tal competência à Seae em seu artigo 19, não lhe confere autonomia administrativa para exercer essa função de maneira independente. Uma vez vinculada ao Ministério da Fazenda, com mandatos subordinados ao chefe desse ministério, é evidente que sua atuação poderá sofrer restrições de natureza política, apenas e tão somente por se tratar de um órgão vinculado à administração direta.

Tal como no exemplo citado acima, seria difícil conferir à instituição de promoção da concorrência autonomia para opinar sobre o que seria melhor para a livre concorrência e livre iniciativa com o próprio Ministério da Fazenda à testa das negociações para controle de preços. Nesse contexto, entendemos que o projeto de lei precisaria de ajustes. O melhor para a entidade que vier a desempenhar o papel de advogada da concorrência é estar inserida em uma estrutura institucionalmente independente e fortalecida.

Isso não significa que o projeto deva criar limitações evitando que o governo adote medidas políticas em situações como as verificadas acima. Se é difícil controlar as forças de mercado quando a demanda é maior do que a oferta, tão ou mais difícil é impedir que o governo seja pró-ativo e busque uma solução rápida para evitar pressões inflacionárias repentinas. Mas uma advocacia da concorrência institucionalmente independente poderia contribuir para dar luzes ao governo e à sociedade sobre qual o melhor caminho tomar.

Paulo Brancher é advogado e sócio do escritório Barretto Ferreira, Kujawski, Brancher e Gonçalves Sociedade de Advogados (BKBG)