A facção do MST liderada por José Rainha no Pontal do Paranapanema, em São Paulo, não participou do abril vermelho, mas fez, nesta semana, o seu surpreendente abril verde. Sob imensa lona de circo, em Mirante do Paranapanema, no assentamento São Bento, Rainha anunciou aos 3 mil assentados presentes, quase metade do total na região, um plano de adesão às oportunidades econômicas que estão sendo abertas pela era do biocombustível.
Os assentados fornecerão a matéria-prima para produção de biodiesel na própria região do Pontal. Nos três primeiros anos, os de implantação do projeto, cada família receberá do governo um salário mínimo mensal por meio da cooperativa de assentados. O governo também bancará, com R$ 50 milhões, a implantação das lavouras de pinhão-doce para extração de óleo. A opção pelo pinhão-doce foi feita com base em estudos da Unicamp que o indicam como a planta apropriada para a região. Cada família cultivará 2,5 hectares de terra, para se chegar a 60 mil hectares em dez anos. Um escalonamento prudente do uso da terra, de modo que a família de agricultores possa se dedicar a cultivos adicionais e complementares na terra de sua parcela.
Rainha anunciou parceria com o agronegócio e empresas estrangeiras, uma portuguesa e uma espanhola, representadas na ocasião, que se interessaram
ESTÁ EM ANDAMENTO UMA NEUTRALIZAÇÃO CLARA DOS FOCOS DE TENSÃO SOCIAL
por participar da construção da fábrica. Ele afirmou que os trabalhadores querem para a Federação das Associações dos Assentados e Agricultores Familiares do Oeste Paulista o controle de 60% da indústria. Deixou claro que os assentados querem vender o óleo, e não simplesmente o produto agrícola. Querem uma agricultura que agregue valor ao seu produto. O projeto já tem o apoio do presidente Luiz Inácio, dos Ministérios do Desenvolvimento Agrário, do Trabalho e do Meio Ambiente, da Caixa Econômica Federal, da Petrobrás e do Banco do Brasil. Todos representados no ato, além da CUT. Houve fila para assinar o documento de adesão ao projeto do biodiesel. Rainha considera indispensável o apoio do governador José Serra.
O projeto não é apoiado pelo MST. Em tudo, o abril verde quebra a linha ideológica e política do MST do abril vermelho. É evidente que, para chegar ao estágio do anúncio público do projeto, com a presença de representantes de todos os organismos e setores envolvidos, com claro apoio financeiro, técnico e político do governo e do próprio presidente da República, tratase de plano que vem sendo elaborado há muito.
Esse é o MST do governo que, com as manifestações sindicais festivas poupadoras de Lula, no primeiro de maio, e o cabresto das doações sociais compensatórias, expressa a dinâmica do amplo círculo de um poder trabalhista e popular que imuniza o presidente e o PT contra os efeitos políticos das contradições sociais. Está em andamento uma clara neutralização dos focos de tensão social que, a seu modo, representam um dos fermentos da democracia na disputa aberta e livre pelos canais de sua expressão política e partidária. Nessa neutralização a própria política é neutralizada, no esvaziamento dos partidos, que aliás, no geral, se abstiveram, pois nunca entenderam, ou pouco entenderam, o que é a luta pela terra no Brasil e a grave crise das relações de trabalho no campo.
Não obstante, o abril verde do MST do Pontal representa o que parece ser, enfim, uma saída que dá consistência e legitimidade à reforma agrária, que foi bloqueada pelas dificuldades doutrinárias e limitações de perspectiva histórica do MST. Sobretudo as limitações políticas da problemática opção pela tradição prépolítica de uma linhagem de contestadores que vem dos quebradores de máquinas. Os que, na Inglaterra do século 18, e em diferentes lugares onde se deu a crise da sociedade tradicional, levaram a formas primitivas de ação, das respectivas vítimas, no processo de afirmação de seus interesses e direitos. Abre-se publicamente um embate entre o MST de resultados e o MST ideológico, que é, no fundo, expressão de uma metamorfose política criativa e interessante.
O anúncio do Pontal foi, também, uma resposta praticamente oficial ao abril vermelho, com clara cisão na liderança do MST. Cisão, aliás, que vem de longe. José Rainha tem um perfil diferente das demais lideranças da organização política, da qual parece conservar apenas nome e bandeiras. Perfil diferente porque é a única liderança importante do movimento que esteve na cadeia e é assentado. É também o único cuja esposa, trabalhadora rural, participa ativamente das ações políticas da organização e também ela já esteve presa. Isso dá à facção uma legitimidade e um perfil que as demais lideranças não têm.
Os fatos desses dias parecem confirmar que, onde prevalece a prática sobre a doutrina, o projeto social dos assentados vai na direção do aproveitamento das brechas que se abrem no sistema econômico globalizado para afirmar a racionalidade, a economicidade e a legitimidade da agricultura familiar e da reforma agrária. No fundo, essa ala do MST está propondo e concretizando o agronegócio familiar.
A previsão é de que, quando o projeto estiver em funcionamento, cada família terá o rendimento de R$ 1,2 mil provenientes da comercialização internacional do óleo, sem contar os rendimentos adicionais da parcela agroreformada.
PUBLICAMENTE ABRESE UM EMBATE ENTRE O MST DE RESULTADOS E O MST IDEOLÓGICO
Já onde prevalece a doutrina sobre a prática, a tendência é a luta permanente por doações e subsídios do governo, com pouca possibilidade de dar aos assentados dessa facção a oportunidade de mostrar os resultados econômicos de sua concepção de reforma agrária. Não que não os haja. Mas a falta de visibilidade dessa economia que pouco tem de alternativa acaba arrastando os assentados para as demonstrações dos sem-terra, que eles já não são. No equívoco desse misticismo sugerem à opinião pública sua própria derrota e que a agricultura agro-reformista é antieconômica. Para o contribuinte que paga a pesada conta da política social, é difícil explicar que essa luta é justa. ?
*José de Souza Martins é professor titular de Sociologia da Faculdade de Filosofia da USP