Mercado

No álcool, uma disputa fora de hora

No discurso anual sobre “O Estado da União”, em janeiro, o presidente George Bush afirmou que a América é “viciada em petróleo”, alertando que o produto “geralmente” é importado das partes mais instáveis do mundo. Nessa ocasião, Bush elogiou o programa brasileiro de produção de álcool, antes de anunciar o projeto “Iniciativa de Energia Avançada”, que pretende alocar vultosos recursos para pesquisas em energia limpa para uso industrial e residencial.

A preocupação essencial do presidente americano é que a crise do petróleo não é mais de oferta e sim de demanda. Por essa razão, Bush definiu prazo – seis anos – para que o programa americano de energia limpa decole e substitua o petróleo como matriz energética na maior economia do planeta.

Enquanto essa é a realidade da demanda por combustível limpo, o maior produtor mundial dessa energia alternativa enveredou pelo caminho do confronto político para decidir a quem pertence o futuro do álcool no Brasil. As normas que irão reger o mercado desse combustível passaram a ser motivo de disputa entre os ministérios da Agricultura e de Minas e Energia. No momento, a Agência Nacional do Petróleo (ANP) redige uma minuta para tentar conciliar interesses dos dois setores.

Os técnicos de Minas e Energia querem limitar exportações de álcool anidro e estabelecer rígido controle do combustível no mercado doméstico. A Agricultura reconhece a necessidade de controle, mas exige que o setor fique sob sua tutela por considerá-lo agrícola, embora o ministério já tenha conhecimento da decisão de que a exportação e a comercialização do produto no mercado interno serão acompanhadas pela ANP.

O programa brasileiro do álcool é, decididamente, uma questão estratégica para o País. Tanto é desse modo que os produtores preparam-se para uma tarefa que transcende a expectativa de tratar álcool apenas como mais uma commodity. A decisão implicou algumas escolhas. Os produtores do Centro-Sul já decidiram que, até abril, 63% da moagem de cana será destinada à produção de álcool, apesar dos preços obtidos pelo açúcar no mercado internacional.

Por outro lado, o menor índice de renovação das lavouras de cana e a entrada em operação de novas usinas contribuíram para que a safra de cana deste ano atinja 363 milhões de toneladas, 8% a mais que a safra anterior. Levantamento da União da Agroindústria Canavieira de São Paulo (Unica) mostrou que 89 novas usinas entram em operação nos próximos cinco anos, um investimento total de US$ 10 bilhões. A maioria desses novos projetos fica no Estado de São Paulo.

O ministério da Agricultura lembrou que a expansão do setor depende de avanço tecnológico. Nesse caso, o papel representado pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária é essencial, como aliás ponderou com razão o ministro Roberto Rodrigues. Vale lembrar que o presidente Bush bateu na mesma tecla afirmando que a produção de energia limpa é, principalmente, uma questão de tecnologia.

O salto tecnológico que os americanos querem dar, para obter escala industrial na produção de etanol celulósico, o Brasil já deu. No projeto desenvolvido nos anos 80 em Pirassununga, o bagaço, subproduto da moagem da cana e rica em material celulóico, é transformado em álcool, gerando aproveitamento de 100% da cana.

Ao contrário do que se pensa, a produtividade do álcool do Brasil, a mais alta do mundo, se dá com aproveitamento de apenas um terço de seu potencial. A experiência-piloto de Pirassununga está patenteada e já é responsável por unidade produtora com 60 mil litros/dia de álcool anidro.

O Brasil, portanto, tem a oportunidade de liderar o principal programa de substituição da matriz energética “suja” por alternativa com muito menor poder poluente. A decisão de transformar o álcool em produto estratégico não suporta querelas políticas de nenhum tipo. E, em última análise, cabe ao governo não admiti-las. Sejam quais forem as lideranças políticas nelas envolvidas.