A bilionária indústria brasileira da cana-de-açúcar, setor que promete faturar R$ 40,3 bilhões nesta safra, é um indiscutível caso de sucesso. Mas a fama de indústria sustentável está em xeque, tanto pelos riscos de concentração fundiária e avanço sobre áreas sensíveis (como o Pantanal), quanto pelos riscos que impõe a boa parte dos 260 mil trabalhadores que farão a partir de agora a colheita da maior safra de cana da história do País.
O modelo de relação trabalhista, item que ampara parte desse sucesso econômico, pode estar matando gente. Essa é a conclusão do Ministério Público do Trabalho (MPT) e da Fundacentro, órgão de pesquisa do Ministério do Trabalho.
José Pereira Martins, 51 anos, natural de Araçuaí (MG), foi a última vítima que caiu sem vida num canavial paulista. Martins ampliou a lista de mortes nos canaviais de São Paulo, que agora chega a 18 trabalhadores. A história dessas mortes permanece obscura. A suspeita recai sobre a superexploração do trabalho, uma situação já classificada de semi-escravidão. A contabilidade dessas mortes começou a ser feita em 2004, quando a Pastoral do Migrante de Guariba (SP), começou a estranhar tantos óbitos de bóias-frias.
O Ministério Público do Trabalho da 15ª Região, responsável pelo interior paulista, abriu um inquérito para investigar o novo caso de óbito. Desde o ano passado, o MPT apura o que está ocorrendo no setor tão aplaudido no mundo e, aparentemente, tão mortífero para os braçais. Mário Antonio Gomes, promotor público do trabalho e responsável pelo megainquérito que corre no MP para apurar negligências no setor, aponta o modelo de remuneração por produção como a base de todos os problemas. É nele que reside o problema. O trabalhador só ganha um valor suficiente, cerca de R$ 900 a R$ 1,2 mil, se cortar mais cana. Como a remuneração básica de R$ 400 não consegue atender às necessidades, cortar volumes de 10 a 20 toneladas de cana por dia é o único jeito de o trabalhador alcançar uma remuneração melhor, explica. O modelo tem servido como nunca para a estupenda competitividade do etanol e do açúcar brasileiro. O modelo pode ajudar a competitividade econômica do setor, mas, definitivamente, não é uma forma de garantir alguma qualidade de vida para milhares de bóias-frias. O MPT prepara uma força tarefa de promotores para fazer uma devassa nos canaviais de São Paulo a partir desta semana, quando as primeiras usinas serão ligadas. Vamos intensificar a fiscalização, ir onde não fomos no ano passado e voltar aos locais que visitamos em 2006. Embora, tenha havido melhoras, as primeiras notícias indicam que a situação pode ter piorado, afirma.
Pelo menos dez promotores integram essa força para atender a dois propósitos: descobrir e autuar empresas que ofereçam condições de trabalho e moradias degradantes; e tentar derrubar o modelo de remuneração por produção. Não será fácil. Sindicatos e trabalhadores acham que o atual sistema é o melhor. Temos tentado mostrar como essa forma induz a esta situação. Outro esforço do MP é coibir a terceirização.
A Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Medicina e Segurança do Trabalho (Fundacentro) prepara um relatório sobre a situação dos canaviais.
O dossiê será entregue ao Ministério do Trabalho e irá relatar abusos que ocorrem no setor. Segundo Maria Cristina Gonzaga, pesquisadora da Fundacentro, a super-safra de cana poderá causar um massacre de trabalhadores neste ano. A situação no campo não melhorou nada em relação ao ano passado, garante.
MAIORES VÍTIMAS
A União da Indústria de Canade-Açúcar (Unica) estima que 260 mil trabalhadores irão cortar cana este ano. A previsão é que esse contingente corte 70% dos 420 milhões de toneladas da produção prevista para o Centro Sul.
Segundo a Unica, 45% dos trabalhadores são migrantes, oriundos do Norte de Minas Gerais e do Nordeste. São trabalhadores contratados diretamente por usinas, muitos por intermediários – os chamados gatos – e uma parcela ainda é a de informais. Esses trabalhadores que migram por conta própria para as regiões produtoras são, em geral, as principais vítimas da superexploração nos canaviais.
Segundo Patrícia Audi, coordenadora do projeto de combate ao trabalho escravo, no Brasil, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a superexploração preocupa. O trabalho escravo não é um grande problema no setor sucroalcooleiro. Atinge 3% do trabalho escravo no País. Mas a superexploração é preocupante, afirma.
Otávio Balsadi, pesquisador que acaba de defender a tese de doutorado na Unicamp, diz que os trabalhadores temporários na cana são as maiores vítimas da desigualdade nas relações trabalhistas. Metade deles, diz, não possui carteira assinada.