Como fazem até as mais famosas socialites, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva cavou um convite para ser recebido por alguém importante. E, como manda a diplomacia, ficou combinado que, para consumo externo, a iniciativa do convite partiu do anfitrião. Assim, segundo o Itamaraty, o presidente da Argentina, Néstor Kirchner, convidou e receberá Lula, na próxima semana. Estarão pairando na sala onde se encontrarem os dois presidentes os ectoplasmas de outros dois chefes de Estado: George W. Bush, dos Estados Unidos, e o venezuelano Hugo Chávez.
Desde o início de março, Lula aproveitou os contatos diplomáticos com os argentinos para informar que queria muito encontrar-se com Kirchner, a sós, na Argentina. Quer mostrar ao mundo que, embora Kirchner tenha abrigado uma manifestação anti-etanol de Chávez, em Buenos Aires, no dia em que o Brasil recebia a visita de George Bush, Brasil e Argentina continuam empenhados, juntos, no projeto de integração sul-americana. Olho no olho, Lula tentará também sacar de Kirchner informações para entender o que pretende, afinal, o argentino, com iniciativas como o Banco do Sul, defendido por Chávez como solução para financiar o desenvolvimento na região.
Sintomaticamente, ambos estarão juntos hoje, mas na Venezuela, reunidos por Chávez em uma cúpula dedicada aos temas de energia. Antes de deixar Brasília, aliás, Lula comentou com auxiliares que vai à reunião, na Isla Margarita, disposto a fazer de tudo e mais um pouco para evitar brigas com Chávez. Mas se o venezuelano criticar o programa de etanol brasileiro, prepare-se para ouvir uma bronca, previne o presidente.
Chávez já recebeu recados prévios, pelo interlocutor freqüente Marco Aurélio Garcia, assessor internacional de Lula. Mudou o discurso, e abrandou a campanha de demonização do etanol, com juras de amor a Lula e acusações a Bush.
Garcia, na semana passada, às vésperas de acompanhar a viagem de Lula, também fez publicar em jornais do Brasil e de países vizinhos (inclusive no venezuelano “El Universal”) um artigo em que diz ser “compreensível e legítimo” que governantes “críticos” de Bush tenham aproveitado a visita dele para sublinhar as diferenças em relação a Washington. Mas a revolução energética em curso não opõe biocombustíveis a combustíveis fósseis e as opções do Brasil não servem de “cenário para discussões político-ideológicas”, avisou o assessor, que citou Fidel Castro (o cubano manteve as críticas contra o etanol de cana). “O diálogo deve substituir a confrontação”, advertiu o assessor de Lula. “A única paixão cabível neste momento é em torno da unidade sul-americana.”
Brasil quer priorizar integração no continente
A cúpula de energia ameaça tornar-se também um constrangimento para Lula, por causa da intenção de Chávez, secundado por Kirchner, de assinar, lá, o convênio constitutivo do tal Banco do Sul, com capital previsto de US$ 7 bilhões, alguns dos quais vindos dos cofres de petrodólares da Venezuela, onde, aliás, está prevista a sede da nova instituição. Aparentemente, Lula contornou o risco de enfrentar um fato consumado e conseguiu levar a pirotecnia do Banco do Sul para o terreno dos factóides, pelo menos nesta semana. É o que se conclui das declarações do ministro da Fazenda, Guido Mantega, que pela segunda vez em dois meses anuncia a entrada do Brasil no grupo para criar o tal banco.
Em março, o próprio Mantega já havia ingressado no grupo, com a ministra da Economia da Argentina, Felicia Miceli. Mas os argentinos esqueceram de convidar o Brasil às discussões sobre o assunto. No sábado, Mantega, na reunião anual do FMI, após encontro com ministros da Argentina, Venezuela, Equador e Bolívia, falou que haverá novo convênio para formar o Banco do Sul, desta vez com o Brasil de sócio, e que, por isso, Argentina e Venezuela deverão “rasgar” o compromisso que haviam assinado anteriormente – impulsionado pela pressa do venezuelano em ter um banco conforme seus interesses.
Mantega está excessivamente otimista em relação à reação de Chávez. Disse que o debate sobre o banco não dura menos de 12 meses, e chegou até a sugerir que a futura sede do novo banco fique em um “país pequeno”, longe, portanto, do venezuelano, que já apresentou uma lista de prédios em Caracas para a futura sede. O papel da Argentina tem sido ambígüo nessa discussão, o que leva Lula a ter forte interesse em conversar diretamente com Kirchner, longe de Chávez, sobre o tema.
A Venezuela tem sido a principal compradora de títulos da dívida argentina, e tem apoiado a emissão de bônus responsáveis pela situação de relativo conforto da Argentina no front externo. Kirchner pauta suas política exterior pela agenda interna do país, e, neste ano, para complicar, há eleições presidenciais na Argentina. O governo local negociou até o adiamento da missão periódica de avaliação do FMI, para privar a oposição das previsíveis críticas dos técnicos do fundo. Ao facilitar o manejo das contas externas para a Argentina, Chávez é, no momento, mais útil que Lula. Caberá ao brasileiro provar o contrário.
Na Argentina, a emergência de Chávez no Cone Sul é interpretada, ainda, como reflexo da mudança definitiva na geopolítica continental, que deu força inédita para a questão energética e criou um ambiente “multipolar”, onde havia blocos autônomos e relativamente isolados. É o que defende um dos maiores especialistas em Mercosul e respeitado intelectual, o diretor da Fundação BankBoston na Argentina, Félix Peña.
A importância da estratégia energética dos países, e o novo peso da Venezuela e Bolívia nesse cenário são marcantes para a Argentina, e a multipolaridade não desagrada ao país, que via com preocupação a crescente hegemonia brasileira. Como nota Peña, soluções e projetos, para a região, inclusive os rumos da relação com os EUA, não sairão do gabinete de Lula, nem de Chávez, mas terão de ser negociados entre todos, inclusive atores relevantes como o Chile, país que Lula visita na mesma viagem que o levará à Argentina.