Subdesenvolvimento não se improvisa, dizia Nelson Rodrigues. Incompetência também não, e a diplomacia petista, nesse requisito, continua imbatível. A reação do governo brasileiro ao novo lance do presidente boliviano, Evo Morales, foi digna da política exterior dos últimos três anos. Segundo a nota oficial divulgada na terça-feira pelo Palácio do Planalto, a decisão do governo boliviano de nacionalizar as riquezas de seu subsolo e controlar sua industrialização, transporte e comercialização é reconhecida pelo Brasil como ato inerente à sua soberania.
Essa declaração pomposa teria algum sentido, se estivesse em discussão a soberania do Estado boliviano. Mas não estava.
Não era esse o problema, a não ser, talvez, na cabeça do presidente Evo Morales. Para o governo brasileiro, o problema objetivo era outro. Era a defesa dos interesses do Brasil.
Estavam em jogo não só interesses, mas também direitos. A decisão boliviana pode ter sido um ato soberano, apesar de sua forma um tanto carnavalesca.
Mas a soberania não é apenas um fato político, nem se confunde com a força. É também um dado legal, e isso é especialmente claro quando se trata de relações internacionais .
A jurisdição exclusiva sobre uma nação ou sobre um território, típica do poder soberano, não exclui as obrigações, nem exime de cobranças o poder de Estado. Este é um dos pressupostos do sistema internacional.
Sem essa condição, a cooperação entre os Estados seria muito mais difícil e a paz, infinitamente mais frágil.
Os antolhos ideológicos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e de seus assessores parecem dificultar a percepção desses dados elementares. Isso explica, provavelmente, a necessidade do governo brasileiro de quase pedir desculpas ao presidente Evo Morales, no começo da nota oficial, para só depois mencionar a disposição de agir, em todos os foros.
A menção aos dispositivos contratuais amparados no Direito Internacional só aparece no quarto parágrafo, depois de uma referência à vontade política de ambos os países. A seqüência, poderá dizer alguma alma caridosa, é mero gesto diplomático: o recurso ao Direito, quando se trata de solucionar um problema com um país irmão, fica em segundo plano, porque o mais importante é a boa vontade. Essa explicação é implausível. O fato parece mais simples: o governo brasileiro está disposto a aceitar desaforos de seus imaginários aliados estratégicos, mas não tem coragem de falar claramente em direitos e interesses do País.
Mas os direitos e interesses, nesse caso, são tão concretos quanto aqueles alegados pela diplomacia brasileira, quando se trata de protestar contra as medidas antidumping do governo americano ou contra os subsídios europeus à exportação de açúcar. A diplomacia brasileira não menciona a soberania dos Estados Unidos, nem de qualquer país europeu, quando resolve contestar decisões e políticas contrárias, em sua opinião, às obrigações das maiores potências. Por que deveria? A referência aos direitos do Estado boliviano é apenas mais uma expressão das fantasias diplomáticas do governo petista.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva e seus estrategistas internacionais continuam brincando de liderança terceiro-mundista, mesmo depois de ouvir desaforos e mais desaforos.
Como outros aliados estratégicos, o presidente Evo Morales nunca se preocupou com boas maneiras e com firulas diplomáticas, quando se tratou de manifestar seus desejos ao governo petista. Foi cauteloso antes de chegar ao poder, mas não depois de assumir o cargo. Falou abertamente quando esteve no Brasil, durante a última reunião do Banco Interamericano do Desenvolvimento (BID). Desprezou as sutilezas quando foi entrevistado no programa Roda Viva
e não disfarçou sua truculência ao expulsar da Bolívia, logo em seguida, a EBX.
O governo brasileiro foi surpreendido não pelo conteúdo, mas pela forma da ação de Morales, segundo o assessor internacional da Presidência da República, Marco Aurélio Garcia. Se não foi surpreendido pelo conteúdo, por que não cuidou antes de acertar as condições em que a Petrobrás passaria a operar? Por que se vê forçado, agora, a recorrer a negociações para defender os direitos da estatal e para definir as condições de fornecimento de gás? Foi surpreendido, sim, e de forma humilhante, por ter sido incapaz de entender os recados claríssimos de Evo Morales.
Afirmar o contrário é arriscarse a ser réu confesso de crime de responsabilidade. Reconhecer a incompetência sai mais barato.