Para a maioria dos leitores, Rodada Doha é um dos assuntos mais aborrecidos que aparecem diariamente na imprensa. É uma interminável discussão sobre comércio internacional, recheada de termos técnicos pouco compreensíveis para os não-iniciados.
Mas é menos complicada do que parece e muito mais importante do que faz supor o noticiário sobre o assunto. A Rodada Doha é uma seqüência de reuniões que começou em 2001 em Doha, no Qatar, entre ministros de 148 países que pertencem à OMC (Organização Mundial do Comércio). Ela dá continuidade à Rodada Uruguai, iniciada em 1993.
Afinal, o que discutem esses ministros em reuniões intermináveis? Aonde pretendem chegar? Numa simplificação, pode-se dizer que eles perseguem uma das quase-utopias atuais da humanidade, que é o mundo sem fronteiras comerciais, sem discriminações e com liberdade total para comprar e vender. Algo que guarda certa relação com uma estrofe da inspirada proposta de John Lennon em sua canção “Imagine”.
Infelizmente, por mais que tenha avançado a globalização, o mundo está ainda longe desse objetivo imaginário. A última conferência da Rodada Doha, em Cancún (México), em 2003, terminou em completo fracasso. Não houve praticamente nenhum avanço na busca da utopia. Em dezembro, haverá uma nova reunião ministerial, desta vez em Hong Kong (China).
Esperava-se que em Hong Kong pudesse haver algum acordo sobre redução de tarifas comerciais. A esta altura, as expectativas já são muito menores. Para o Brasil, assim como para outros países em desenvolvimento produtores agrícolas, estão em jogo bilhões de dólares em receitas comerciais.
Há décadas, o mundo vem reduzindo tarifas de importação de produtos industriais, o que interessa aos exportadores ricos da América do Norte e da União Européia e ao Japão. Mas, só recentemente, a partir da Rodada Uruguai, passou-se a negociar também a redução de tarifas de produtos agrícolas, que interessa aos exportadores emergentes, como Brasil e Argentina.
Além de se beneficiar com as reduções de tarifas industriais, os ricos nunca aceitaram cortar suas pesadas alíquotas, que impedem a importação de produtos agrícolas. Os produtores rurais dos países ricos não têm como enfrentar seus competidores dos emergentes. Um quilo de carne bovina no Brasil, por exemplo, custa US$ 0,90 para ser produzido, o que representa 40% do custo australiano ou americano. Por essa vantagem competitiva, apesar da aftosa, o Brasil já se tornou o maior exportador mundial de carne bovina, com receita de US$ 2,5 bilhões de janeiro a setembro. Essa vantagem se apresenta também em outros produtos, como açúcar, soja, algodão etc. Por isso, a Europa, os EUA e o Japão impõem barreiras comerciais aos produtos agrícolas e também oferecem subsídios bilionários para que seus ineficientes fazendeiros continuem a produzir. Só nos EUA, os subsídios atingem hoje US$ 23 bilhões por ano.
Um estudo feito pelo Banco Mundial mostra que, se por um passe de mágica, caíssem todas as barreiras e fossem zerados todos os subsídios agrícolas do Primeiro Mundo, o valor da produção agrícola brasileira aumentaria 34% e haveria uma imediata elevação de receita de US$ 3,6 bilhões por ano. Ao longo dos anos, pelo estímulo que isso representaria, os ganhos seriam incalculáveis.
A discussão da Rodada Doha, portanto, é crucial para o comércio mundial. De um lado, estão os ricos, principalmente europeus e americanos, que oferecem medíocres reduções de tarifas para produtos agrícolas e se reservam o direito de manter “produtos sensíveis”, aqueles que, a seu bel-prazer, não terão alíquotas reduzidas. De outro lado, estão os emergentes produtores agrícolas, liderados pelo Brasil, que lutam por reduções de tarifas agrícolas e, em compensação, estão sendo obrigados a oferecer mais cortes em alíquotas de itens industriais por eles importados, abrindo mão da proteção de sua indústria nascente.
Esse é o cenário da batalha de Hong Kong, que será travada em dezembro. Mais um round na busca de um mundo sem fronteiras comerciais, difícil de imaginar, mas um ideal a perseguir.
Benjamin Steinbruch, 52, empresário, é diretor-presidente da Companhia Siderúrgica Nacional, presidente do conselho de administração da empresa e primeiro vice-presidente da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo).