O advogado James Bacchus afirma que a solução de controvérsias da OMC é um sucesso comercial e legal
Por Flávia Pardini
James Bacchus presidiu até dezembro de 2003 o Órgão de Apelações da Organização Mundial do Comércio (OMC), a última instância a que os países podem recorrer para resolver controvérsias comerciais. Em oito anos, julgou 60 casos – o último deles referente à sobretaxa sobre a importação de aço pelos EUA, com ganho de causa ao Brasil e outros países.
Bacchus participa, na terça-feira 28, do debate Exportações em Perspectiva: Barreiras, OMC, G 20 e Novos Mercados, promovido por Carta Capital .
Ao contrário do representante-adjunto para o comércio dos EUA, Peter Allgeier – que em visita ao Brasil alertou contra o perigo da ênfase exagerada no litígio em detrimento das negociações comerciais –, Bacchus acredita que recursos ao sistema de solução de controvérsias não prejudicam o avanço da Rodada de Doha de comércio internacional.
Bacchus prevê uma onda de ações contra a China no setor têxtil e diz que o acordo da Alca depende do sucesso das negociações multilaterais.
CartaCapital: A falta de um acordo de comércio multilateral significa que cada vez mais haverá recursos ao sistema de solução de controvérsias da OMC?
James Bacchus: Até agora não vi evidências de conexão entre o volume de casos no sistema de solução de controvérsias e o progresso em direção à conclusão da Rodada de Doha. Há duas correntes de pensamento sobre esta questão. Alguns acham que o atual progresso nas negociações multilaterais significa que haverá menos recursos ao sistema, pois os membros da OMC tentarão resolver suas disputas nas negociações. Do outro lado, há os que acreditam que, com o progresso das negociações, os países membros preferirão abrir casos de solução de controvérsias para criar vantagens nas negociações. Eu não vi evidência que apóie qualquer uma dessas visões. E as negociações continuam.
CC: Mas houve atrasos, o fiasco de Cancún e, ao mesmo tempo, questões como as do aço, açúcar e algodão foram definidas no sistema de soluções de controvérsias.
JB: Não acho que essas disputas tenham sido levadas ao sistema devido à falta de avanço nas negociações. Acredito que é sempre melhor resolver disputas nas negociações do que via solução de controvérsias. Mas a existência de procedimentos legais para a solução de controvérsias não é sinal de qualquer falha no sistema, cujo sucesso é justamente o fato de encorajar os países a levarem disputas a Genebra e solucioná-las com base legal, dentro dos acordos existentes.
CC: Há expectativa de uma nova onda de disputas, desta vez no setor têxtil.
JB: Sim, isso é inevitável devido ao fim das cotas globais no fim deste ano-calendário. Isso foi acordado na Rodada Uruguai e, portanto, sabia-se há uma década que as cotas globais no setor têxtil acabariam no fim de 2004. Agora os membros da OMC estão começando a lidar com isso. As regras da OMC prevêem mecanismos para lidar com enxurradas de importações e outras ações comerciais que podem ocorrer em vários lugares do mundo em conseqüência do fim das cotas.
CC: O problema é que a China vai dominar o mercado global?
JB: A ironia é que o mercado mundial de têxteis mudou desde a conclusão da Rodada Uruguai. Durante a rodada, a maioria dos países em desenvolvimento era a favor do fim das cotas. Achavam que se dariam melhor nos mercados americano e europeu sem elas. Mas, nesse ínterim, a China surgiu como um ator importante no comércio de têxteis e tornou-se, também, um membro da OMC. E agora vários países em desenvolvimento temem que isso os prejudique. Podemos antecipar que a China será alvo de muitas ações comerciais e disputas relacionadas a têxteis nos próximos anos.
CC: Ouve-se muito sobre as negociações e as controvérsias no setor agrícola. Mas pouco sobre outras áreas acaba chegando às páginas dos jornais. O que mais tem sido feito?
JB: O sistema de solução de controvérsias da OMC envolve o mundo todo e há disputas relacionadas a alguns países que podem afetar todas as nações. Um exemplo foi a disputa entre o Peru e a União Européia (UE), há alguns anos, sobre as importações européias de sardinhas. Não vi uma linha na mídia sobre esse assunto, a não ser no Peru e nos países europeus. E era um caso extraordinariamente significativo.
CC: Por quê?
JB: Foi a primeira vez que o Órgão de Apelações foi chamado a interpretar o acordo sobre barreiras técnicas ao comércio, que é parte do tratado da OMC e afeta milhões de regulações técnicas em todo o planeta. É importante notar que o povo brasileiro é provavelmente mais bem informado sobre o que acontece na OMC do que outros povos. Isso porque o Brasil tem tido um papel de liderança na OMC nos últimos meses e anos, ajudando a estabelecer a agenda global para negociações, com impacto também na solução de controvérsias. Os termos do acordo sobre agricultura que abre caminho para a conclusão da Rodada de Doha são um exemplo da liderança do Brasil.
CC: Há preocupação no Brasil de que, uma vez acordados os temas agrícolas, veremos mais barreiras técnicas para proteger mercados hoje resguardados por tarifas e medidas antidumping. Isso o preocupa também?
JB: Eu antevejo que temas sanitários e fitossanitários se tornarão uma preocupação crescente. A questão será: essas preocupações estão realmente relacionadas à saúde pública e à segurança ou são medidas disfarçadas para restringir o comércio internacional? Durante a Rodada Uruguai foi aprovado o acordo sobre a aplicação de medidas sanitárias e fitossanitárias e, na primeira década do sistema de solução de controvérsias, houve alguns casos sobre esse acordo. Prevejo que haverá muitos mais. Todos os membros da OMC têm o direito de estabelecer o nível de proteção que considerem apropriado para preservar a saúde e a segurança domesticamente, mas isso tem de ser feito de uma determinada maneira. Aí mora a controvérsia. Alguns membros não seguem suas obrigações ao adotar e aplicar medidas sanitárias e fitossanitárias.
CC: A Unctad propõe a criação de um sistema multilateral para regular as taxas de câmbio e sugere que funcione como o sistema de comércio. O que a OMC pode ensinar a outras organizações multilaterais?
JB: A OMC obteve dois grandes sucessos até agora. Um é servir seus membros ao moldar e fortalecer o sistema multilateral de comércio. Ou seja, o primeiro sucesso é no comércio. O outro é mostrar que é possível que o mundo opere dentro de um regime legal internacional. O sistema de solução de controvérsias em particular é um exemplo deste regime. Portanto, o segundo sucesso é na área do direito. Acho que é um exemplo do tipo de esforço de cooperação internacional necessário em áreas muito além do comércio.
CC: De outro lado, organizações como a Oxfam defendem regras mais justas, pois os países pobres não têm voz dentro da OMC. Sabe-se que o ritmo das negociações é dado pelas nações mais importantes…
JB: Isso talvez tenha sido verdade nos anos 50, mas não acho que seja mais. O sucesso do Brasil é uma indicação de que os países em desenvolvimento têm uma voz significativa na OMC, aprenderam a exercer seu peso coletivo. Não quer dizer que a OMC não precise de melhorias, mas a maior parte das acusações feitas de fora evidencia falta de compreensão de como o sistema opera.
CC: O senhor propôs uma mudança: abrir o sistema de solução de controvérsias ao público. Neste caso, o que veríamos?
JB: Se o mundo exterior pudesse observar os procedimentos ficaria… aborrecido! São procedimentos legais tediosos, fechados. Mas ficaria claro que os integrantes dos painéis e do Órgão de Apelações são disciplinados, objetivos, independentes e exaustivos em seu esforço para chegar ao resultado correto em qualquer disputa na OMC.
CC: Há chance que a proposta seja aceita?
JB: Não a curto prazo. Que eu saiba, apenas um membro apóia minha proposta, os EUA, e para mudar as regras é preciso consenso.
CC: Se isso asseguraria transparência, é estranho que os países não concordem.
JB: O sistema está em evolução. O que começou como uma iniciativa diplomática torna-se cada vez mais um processo legal. Se é visto como um processo diplomático, faz sentido que fique atrás de portas fechadas. Visto como um processo legal, faz sentido abri-lo ao escrutínio público.
CC: Acordos regionais como a Alca prejudicam as negociações na OMC?
JB: Acho que temos de dar prioridade máxima à conclusão da Rodada de Doha. Só assim poderemos ter sucesso na Alca. Digo isso por causa da centralidade do tema da agricultura. Não podemos concluir a Alca até que haja um acordo hemisférico sobre agricultura e isso não ocorrerá na ausência de um acordo global – os EUA não estão em posição de fazer concessões agrícolas sem que a UE também faça. Mas não há por que as negociações da Alca não possam ocorrer simultaneamente à Rodada de Doha.
CC: Há quem diga que o Brasil não deve ser considerado país em desenvolvimento, pois seu agrobusiness é de Primeiro Mundo. A classificação dos países na OMC será revista? Como afetaria o equilíbrio de forças?
JB: Os membros precisam analisar esse tema. Essas definições não existem na OMC, não existiam no Gatt, e os membros se auto-identificam. Tem sido assim por mais de 50 anos. Mas agora a maioria dos membros da OMC é de países em desenvolvimento e percebe-se que nem todos têm o mesmo nível de desenvolvimento. Há acordo quanto aos países menos desenvolvidos porque há um padrão da ONU para julgar isso. Mas a dificuldade é com países como Brasil, Coréia e outros, que se desenvolvem rapidamente. O objetivo é que todos os países se desenvolvam, e estamos ainda longe disso. Se vamos continuar a oferecer tratamento diferenciado aos países em desenvolvimento – e deveríamos fazer isso –, então é preciso discutir os diferentes níveis de desenvolvimento. Isso estará cada vez mais presente nas negociações da OMC. Na minha opinião, o Brasil é um país em desenvolvimento.
DEBATE
“Exportações em Perspectiva: Barreiras, OMC, G 20 e Novos Mercados”.
Debatedores: Roberto Rodrigues, ministro da Agricultura; James Bacchus, ex-juiz da OMC; Mário Mugnaini, secretário-executivo da Camex.
Mediação: Delfim Netto, deputado federal.
28 de setembro de 2004, das 8h30 às 12 horas
Centro Cultural Britânico
Rua Ferreira de Araújo, 741
Informações: (11) 3262-3545
– ramais 110 e 111.
DEBATE
EXPORTAÇÕES EM PERSPECTIVA: BARREIRAS, OMC, NOVOS MERCADOS E G20
Por motivo de acidente com o palestrante James Bacchus, CartaCapital transferiu o evento para o dia 18 de novembro, em local a ser confirmado.
Mais informações: (11) 3262-3545 ramal 110/143